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quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Um Bom Natal


Ele saiu da academia, colocando os fones de ouvido do rádio do celular estrategicamente sintonizado em uma rádio AM e ajeitando as alças da mochila. Suava feito um cavalo, a camiseta ensopada, suor escorrendo até pelos braços, sentiu o abafamento da rua em contraste com o ambiente do ar-condicionado dentro da academia. Chegou a fechar um olho. Ao olhar para a frente, surpresa:
Deparou-se com ela sentada em um banquinho no bar do outro lado da rua sorvendo uma Soda Limonada. Ela sorria e acenou pra ele, que retribuindo o sorriso, atravessou para encontrá-la. Ela se levantou pronta para abraçá-lo, mas ele a deteve:
-Não faz isso, eu tô fedendo... - Alertou.
-Não me importa. - Ela disse. -Tô precisando de um abraço.
O enlaçou com os braços finos, sem ligar para a roupa molhada que o envolvia. Ele, desconfortável com a própria descompostura, correspondeu de maneira tímida ao amplexo.
-Que tu tá fazendo por aqui? - Ele perguntou como se para criar um pouco mais de espaço entre os dois.
-Te esperando, né, animal? - Ela respondeu, arrancando-lhe risadas.
Riu junto.
-Tu tá indo pra casa? - Perguntou.
-Não. Bom, tô, mas tenho que passar no mercado, antes. - Ele respondeu, tentando desencorajá-la a acompanhá-lo. Uma das coisas que mais desgostava na vida era quando as pessoas alteravam seu caminho a troco de nada, mas ela disse:
-Eu vou contigo.
Saíram andando juntos pela José do Patrocínio, lado a lado.
-Que tu anda fazendo? - Ela quis saber.
-Ah... O de sempre. - Ele disse. -Nada de novo...
-Nada mesmo? - Ela quis saber.
Ele a olhou de esguelha.
-Não... - Disse.
Ela insistiu:
-Tu sumiu... - Ela disse. -Achei que tu estivesse... - Ele a interrompeu:
-Não. Foi um evento isolado que não significou nada.
Ela fez um ruído indefinido que continha, ao fundo, uma nota de desaprovação. Ou talvez fosse apenas sua consciência pesada.
-E tu? - Ele perguntou. -Que tu anda fazendo?
-Só trabalhando. - Ela disse. -Ah... Comecei a frequentar uma sociedade espírita ali no centro... Tem uns encontros três vezes na semana. A gente estuda, conversa...
-Vê gente morta... - Ele interrompeu, escarnecendo.
-É. Eu sei que tu não acredita. - Ela disse, sorrindo. -Mas me faz bem. Eu gosto de ter uma muleta.
-Sabe... É uma coisa que eu não entendo... Tu é uma guria inteligente. Esclarecida. Lê pra caramba, sabe das coisas... Tu mesma admite que essa baboseira é uma muleta... Se tu sabe que é uma muleta, isso não significa que tu sabe que não é real? E se é o caso, então pra que ir?
Ele se exasperou levemente, como sempre acontecia quando falava de religião. Sentiu a modulação de voz se perder por alguns segundos. la continuava tranquila.
-Eu não sei "que não é real" - ela corrigiu. -Só não sei se é, ou não. E nesse caso, gosto de arriscar. É que nem a parábola do ladrão e do padre que tu me contou que leu no Homem-Aranha...
-É do cavaleiro e do monge. E eu li no Demolidor... - Ele corrigiu.
-Isso. - Ela assentiu. -Ou As Aventuras de Pi... Eu prefiro a versão com o tigre.
Ele sorriu pra ela, que sorriu de volta fazendo uma careta:
-Não seja condescendente comigo, Ned. - Ela o repreendeu. -Com esse sorriso de "Pobre-loira-burra" pra cima de mim, Senhor humanista secular que não acredita em nada.
Ele riu alto.
-Mas quem disse que eu não acredito em nada? - Ele inquiriu.
-Tu! - Ela respondeu, acusadora.
-Não... - Ele corrigiu. -Eu acredito. Acredito em um campo de energia viva que vive ao nosso redor e dentro de nós.
Ela ergueu as sobrancelhas finas olhando pra ele e esperando a punch-line.
-E o que é isso? - Perguntou, mais para acelerar o processo do que por realmente querer saber.
-A Força. É o que dá a um Jedi o seu poder. - Ele respondeu, solene.
-Vai te catar. - Ela disse, batendo com a mão no ar como que afastando a ideia.
-Eu acho a tua falta de fé perturbadora. - Ele respondeu, rindo.
-Por falar nisso, tu já foi ver? - Ela perguntou.
-Fui. - Ele respondeu, satisfeito. -Vestido de Jedi e tudo.
-Ah, não acredito. - Ela riu.
Ele sacou o telefone celular do bolso da mochila, abriu o álbum de fotos e exibiu uma delas, onde usava um traje negro de Jedi com direito a casaco longo, túnica com Obi e Tabbards, botas de cano longo e um reluzente sabre de luz verde diante do enorme letreiro do filme no cinema.
Ela riu.
-Meu Deus do céu, guri...
-Eu não queimo cartucho, alemoa. Era Star Wars. Se era pra eu me fantasiar pra ir ao cinema ver um filme, ou era Star Wars, ou era Homem-Aranha.
Ela ainda olhava a foto.
-Tu até que ficou bonitão de Jedi... - Disse. -Mas podia ter tirado os óculos, né?
-É. - Ele concordou. -Mas não me lembrei. Acho até que, pra algumas fotos eu tirei...
-"Algumas"? Quantas fotos tu tirou?
-Na verdade eu não tirei nenhuma, mas eu e um sujeito vestido de Kylo Ren éramos abordados constantemente por gente querendo tirar foto.
Ela gargalhou.
-Só imagino tu, a timidez em pessoa, sendo abordado por estranhos no shopping pra tirar foto.
-Que nada. - Ele disse. -Entrei no personagem. O mestre Jedi Rody-Wan Kenobi tira foto com todo mundo.
-Quem? Mestre Jedi o quê? - Ela perguntou, rindo muito.
-O meu Jedi favorito é o Obi-Wan Kenobi... Mas eu tava vestido de Luke Skywalker, e um piazito na fila do cinema me disse que eu era o Qui-Gon Jinn, então eu nem sei... Tu foi ver? - Perguntou.
-Não... Eu só vejo esses filmes contigo. Não sou fanática que nem tu... - Ela respondeu devolvendo o celular.
-Não sou fanático... - Ele corrigiu. -Sou devoto. A gente pode ir ver um dia desses. Tô querendo ver em I-Max, mas tá difícil conseguir ingresso.
-Quantas vezes tu já viu? - Ela perguntou, fazendo uma careta de espanto.
-Só uma. - Ele a tranquilizou. -Mas planejo ver ao menos mais duas.
Ela sorriu. Chegaram ao mercado, ele fez suas compras, e depois ela até o ajudou a carregar algumas sacolas já que uma das coisas que ele fora comprar era um saco de dez quilos de ração pra cachorro.
-Como é que tu ia carregar isso tudo se eu não estivesse junto? - Ela perguntou, esbaforida.
-Eu possuo a energia que ata a galáxia unida, tu acha que eu não me viraria com vinte e poucos quilos de compras?
Riram, suando e arfando as duas quadras que separavam o mercado da casa dele. Ao chegarem ao portão do prédio, ele falou:
-Tu quer esperar um minutinho? Eu largo essas coisas lá em cima e te levo em casa...
-Não... Não. Pode ir fazer tuas coisas. Eu volto sozinha.
-Tá começando a chuviscar. - Ele alertou mostrando o chão salpicado d'água.
-Eu vi. - Ela disse. -Mais um motivo pra tu não ir comigo. Vai tomar teu banho, eu pego um táxi.
-Em Porto Alegre? Às seis da tarde? Num dia 23 de dezembro e com chuva? Tu nunca vai pegar um táxi. - Ele replicou.
Ela riu.
-Ou um ônibus. Eu decido no caminho até a Praia de Belas.
-Tu que sabe. - Ele disse, sentindo a raiva por um daqueles momentos ser a exata razão para ele detestar quando alguém saía do caminho só para acompanhá-lo. -Vem aqui, então. Me dá um abraço de feliz natal.
Ela protestou:
-A gente não pode se ver amanhã?
-Amanhã vai chover torrencialmente. - Ele disse.
-Como tu sabe? - Ela perguntou, olhando pro céu.
-A Força me provém com insights do futuro, mulher ignorante. - Ele disse, estendendo a mão espalmada para a frente, de leve.
Ela deu uma palmada na mão dele que riu:
-O aplicativo meteorológico do meu celular nunca erra. Vai chover amanhã.
Ela suspirou e deu um passo à frente. O abraçou com vontade. Ele retribuiu dessa vez, a abraçando com força, e dando-lhe um beijo estalado no rosto, que ela devolveu.
-Tu tá salgado. -Disse.
Ele riu que sabia.
Ficaram assim alguns momentos, e então ela se desprendeu dele, que a liberou.
-Me passa aquela foto de Jedi por whats. - Ela pediu.
-Pra quê? - Ele perguntou? -Pra tu caçoar de mim com teus namoradinhos descolados? - Ele perguntou, fazendo uma cara feia.
-Não. - Ela respondeu. -Pra que quando eu me perguntar "Por que foi mesmo que a gente terminou?", eu olhe pra foto e diga "Ah, é. Foi por coisas como essa.".
Ele caiu na gargalhada.
-Tá, depois eu te mando. - Prometeu, virando as costas, chave em punho para abrir o portão.
Atrás dele, ela o chamou:
-Ned.
Ele virou, e ela mandou um beijo infantil, uma coisa que fazia quando eles namoravam.
-Feliz natal, mestre Rody-Wan.
-Feliz natal, alemoa. - Ele respondeu.
-Amanhã eu te ligo. - ela disse. -E me manda a foto. - reforçou.
-Mandarei. - Ele disse, a olhando partir, desviando das poças e encolhendo o pescoço conforme era açoitada pelos pingos da chuva fina.
Aquele seria, afinal de contas, um bom natal.

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