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terça-feira, 17 de novembro de 2009

Amor ao jogo.




Gersão era centroavante.
Mais que isso, Gersão era O Centroavante.
Assim mesmo, com artigo em maiúscula. Quando jogava, Gersão gelava os corações de zagueiros pelos campos de várzea de todo o Rio Grande do Sul em todos os certames de que participava, tamanha era sua naturalidade no ofício de fazer gols.
Alguns diriam que era pelo empenho. Gersão adorava jogar futebol desde a mais tenra infância, e aperfeiçoara-se na matéria ao longo de mais de vinte anos de prática. Outros diriam que era a genética.
Era grande e forte como um touro, o Gersão, rápido como um leopardo, habilidoso como... Bom, ele era habilidoso. Não que isso fizesse diferença, como todos os gaúchos sabem, centroavante não precisa ser habilidoso, se fosse habilidoso, melhor, mas habilidade era requisito de meia-armador e ponta-de-lança, posições em que homem que é homem não joga, já diria Luís Fernando Veríssimo.
Enfim, centroavante não precisa ser habilidoso, tem é que ser forte, e saber fazer gols, e, por Deus, Gersão era forte, e por Deus, ele fazia gols.
Mais que apenas isso, sabia como poucos fazer papel de pivô, e tinha uma malandragem toda particular para enfiar os cotovelos nas costelas dos zagueiros adversários que fossem incautos o suficiente para tentar emparelhar com Gersão em sua inexorável marcha em direção ao gol.
Gersão, com seu futebol cinematográfico e temperamento quente e explosivo, era a estrela do seu time, o Balaco de Vila Capim, que já erguera três campeonatos da várzea, sempre com ele como artilheiro e estrela da equipe, e agora já mirava um inédito tetra, e uma inédita quarta artilharia á despeito das promessas em contrário dos rancorosos adversários.
Gersão, como todo o jogador varzeano, tinha uma vida além das quatro linhas. Fora dos gramados trabalhava como eletricista, profissão no qual era competente, embora não tão competente quanto era em sua vida dentro dos gramados, com o número nove brilhando às costas, mas competente o bastante para realizar um trabalho de fundamento e viver honestamente sem passar necessidade.
Enfim, por ser grande, forte, centroavante estrela do seu time, e tivesse um emprego bastante decente e que lhe rendeu casa própria e um garboso Corcel II vermelho, ano 1978 do qual cuidava com amor paternal, Gersão fazia sucesso com as moças da vila.
Inclusive com Sheila, morena esplendorosa, dona de um rosto angelical preso por um pescoço perfumado e macio a um corpo de deusa da luxúria.
Sério. Deus da luxúria, mesmo.
Os seios de Sheila podiam fazer moribundos voltarem à idade de lactação, sua barriga torneada faria Kristen Bell andar de burca pelo resto da vida, seus quadris fariam xeques árabes empenharem seus palácios para ter mais camelos que oferecer em sua troca, e suas pernas podiam envolver um homem adulto e espremê-lo até que ele implorasse por piedade (embora, mesmo assim, um homem adulto em sã consciência iria preferir continuar sob o jugo de suas coxas suaves)...
É, Sheila era tudo isso. E, por incrível que possa parecer, era uma moça direita, conforme descobriu a duras penas Gersão, que só recebeu acesso ás curvas deliciosas de Sheila após presenteá-la com aliança de compromisso, conhecer os pais da jovem, e pedir-lhe a mão em matrimônio.
Parecia um sacrifício. Sacrifício que, confirmaria Gersão mais tarde, valera a pena. Valera tanto que Gersão deixara de lado a vida de prazeres mundanos provenientes de sua notoriedade de centroavante matador.
Gersão abandonara as noitadas e tornara-se homem de uma mulher só, e, para azar dos zagueiros dos times adversários, não dividia mais a sua energia entre várias mulheres e o futebol. Encontrara sua alma gêmea em Sheila, que era dedicada, prendada e amorosa, e merecia que ele se dedicasse a ela na mesma medida, o que ele fazia com todas as suas energias.
Ou assim ele supunha.
Aconteceu que mesmo que fosse Sheila uma mulher jovem, bela e fogosa, Gersão, estando casado, se acomodou com relação aos prazeres da carne, e passou a depositar mais e mais de sua energia no futebol, esporte que tanto amava.
Os zagueiros estavam todos com sede de Gersão, pareciam ter feito um pacto de impedi-lo ou de ser artilheiro do campeonato, ou campeão, e chegavam em todas as divididas com ele como se o mundo fosse acabar no próximo lance, e Gersão, tanto por vontade de ser campeão com seus companheiros quanto por orgulho, treinava com afinco e dedicação absolutos para estar mais forte, mais rápido e mais preparado no gramado a cada final de semana.
E funcionava. Os zagueiros batiam em Gersão como moscas no pára-brisa de uma Hummer, Gersão estava conseguindo se manter na artilharia do campeonato novamente, entretanto sua equipe não ia bem, era terceira colocada no torneio, pois, embora bem servida na frente, carecia de qualidade atrás. Os zagueiros do Balaco eram esforçados, OK, mas isso não bastava.
Eles careciam da força, do vigor, do empenho que Gersão esbanjava. Esbanjava e cobrava de seus companheiros e do técnico e dono do time, Castrinho, que piava fino com Gersão, menos por medo de uma eventual altercação com seu jogador, e mais por temor de perder o futebol esplendoroso de seu Centroavante.
Castrinho prometeu uma solução imediata para os problemas defensivos do Balaco, e ela surgiu na forma de Romero Torres.
Romero, recém chegado á Vila Capim fora descoberto em uma pelada de parque por Castrinho. Era pouco mais baixo que Gersão, mas tinha físico de frigidaire.
Era sólido, parecia maciço, formava um objeto inamovível quando protegia uma bola. Não tinha apenas o físico de frigidaire, era intelectualmente frio como devem ser os defensores, saltava alto, sabia sair jogando, aparecia perigosamente nos escanteios cedidos pelo adversário e batia faltas como um cavalo.
Como os grandes zagueiros latino-americanos do passado, tinha dois nomes, e exigia ser chamado por ambos. Após um único treino em que demonstrou competência marcando ao próprio Gersão, foi aprovado por Castrinho e pelo craque, e ganhou a flamante camisa três do Balaco, tornando-se o pesadelo dos atacantes dos times adversários, que agora, além de temerem os gols de Gersão no ataque, precisavam orar contra a frieza e força de Romero Torres na defesa.
Por ser um tremendo zagueiro, passou a ser admirado pelos torcedores do Balaco, em especial pelas mulheres, que logo descobriram que era solteiro, além de todos os outros detalhes da vida do novato.
Fora dos campos era, pasmem, professor, ofício no qual era ainda mais competente do que no campo, levava uma vida de monge, para tristeza das mulheres da redondeza, que vendo seu físico sólido dentro do fardamento do Balaco e ouvindo-o declamar Neruda de memória tal e qual Figueroa, o cobiçavam com olhos gulosos pelas ruas da vila, mas ele parecia alheio a tudo enquanto estudava de forma contrita em busca de qualificação.
Dentro das quatro linhas, o Balaco, agora bem guarnecido na zaga e ainda empurrado pelos gols de Gersão, se classificara para as semi-finais do varzeano contra o Tinguará com pinta de favorito.
Após a vitória na partida, um chocolate de 6 x 0 com quatro gols de Gersão e um de Romero Torres, de falta, a final se aproximava e todos apostavam no Balaco.
Até que, durante um dos churrascos de confraternização da equipe que Castrinho organizava após belas vitórias, surgiu a conversa.
Alcoviteiros de plantão diziam à boca pequena que Sheila, a esposa de Gersão, conhecera Romero Torres.
Conhecera no sentido bíblico.
A notícia não tardou a chegar aos ouvidos de Castrinho, que apavorado, confrontou Romero, mas o zagueiro nada disse, deixando o técnico do Balaco ainda mais nervoso.
Se de fato Romero Torres estivesse mantendo um affair secreto com Sheila, e Gersão soubesse, Castrinho ficaria, na melhor das hipóteses, sem um dos pilares de seu time, na pior, sem ambos.
Porém, nada podia fazer, exceto rezar para a máxima de o corno ser o último á saber estar certa e que Gersão descobrisse suas recém ganhas galhadas apenas após a partida final. Porém as preces de Castrinho não foram ouvidas. Fosse por ele ser um mau cristão, fosse por não existir nada além do mundo, os rumores encontraram os ouvidos de Gersão, e, com o rosto deformado de raiva e desapontamento, o avante buscou o conselho de Castrinho.
Perguntou-lhe se ele sabia dos boatos, e após ouvir a tímida confirmação, perguntou o que Castrinho faria em seu lugar.
O técnico respondeu com uma súplica:
Que Gersão não fizesse nenhuma loucura, que era jovem, alto, forte e artilheiro, que pensasse no futuro, e mais um rosário de pedidos que encontraram os ouvidos moucos de um Gersão monocórdico que saiu sem dizer palavra.
Ao chegar em casa, ele exigiu a confirmação de Sheila, que em princípio negou toda a história, mas após ofensiva insistência de Gersão, confirmou a traição.
Mais que isso, deu detalhes dos tórridos encontros com Romero Torres, e da performance do zagueiro entre quatro paredes. Disse que Gersão trouxera aquilo para si, que a negligenciara e voltara todas as suas energias para o futebol.
"O esporte é que é a tua verdadeira paixão. Eu fico em segundo plano", disse ela.
Gersão, com uma expressão fria saiu de casa, passou pelo seu Corcel, apanhou um embrulho, e sob os olhares tensos de todos os fofoqueiros da vila, encaminhou-se caminhando devagar mas decidido à casa de Romero Torres.
Todos esperaram pelo pior. "Gersão apanhou um revólver e vai balear o zagueiro", imaginaram. Muitos aguçaram os ouvidos aguardando o estampido de um tiro. Mas nada ocorreu, exceto silêncio. Quando Castrinho, sabendo do ocorrido, foi até a casa de Romero Torres para descobrir o que ocorria, foi atendido pelo zagueiro, que lhe agradeceu pela preocupação, pediu licença e voltou para dentro.
Durante dois dias ninguém viu ou sequer ouviu palavra de Gersão ou de Romero Torres.
No sábado, dia da final, o Corcel vermelho parou diante do campinho, e Gersão saiu com seu material de jogo pela porta. Ninguém disse nenhuma palavra ou fez nenhuma pergunta enquanto ele se fardava. Pouco depois, Romero Torres chegou de táxi, já fardado. Cumprimentou a todos e ouviu a tensa preleção de Castrinho.
Ao final do jogo, uma vitória de 3 x 0 do Balaco, com dois gols de Gersão e atuação esplêndida de Romero Torres, ambos se cumprimentaram de forma seca, porém cordial, e dali em diante, ninguém voltou a ver nem Romero Torres e nem Sheila.
Gersão seguiu sua vida, voltaria a ser artilheiro do varzeano, mas não ergueria mais o troféu de campeão. Ninguém lhe perguntou o que ocorrera na noite em que ele e Romero Torres conversaram até o nascer do sol, mas há que diga que Gersão sabia que não ergueria outra taça sem Romero Torres na defesa, e que Sheila tinha razão.
O esporte era, de fato, a maior paixão na vida do centroavante.

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