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sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Pobre Gomide


E lá estava Gomide, o bom e velho Gomide. Ele já estava naquela fase da vida em que os pequenos prazeres eram os único que ainda restavam. Vivera mal, fizera escolhas erradas, não era particularmente mau, nunca fora um crápula completo, estava naquela média aceitável de falta de caráter que perfaz todos os seres humanos. Gomide era um filho de seu tempo, esse tempo desastroso em que todos e cada um dos políticos é tão sujo quanto o proverbial pau do galinheiro, em que pseudo-celebridades surgem de cada bobagem, sejam reality-shows, gestações indesejáveis ou escândalos envolvendo vestidos mínimos. Gomide era uma cria desse tipo de ambiente, e sua estreita visão de mundo era sugerida por novelas, propagandas, noticiários sensacionalistas (desses em que jornalistas show-man berram impropérios na cara do espectador) e tele-evangelistas de fala mansa que arrebanham incautos enquanto enchem os bolsos com somas tão vultuosas que nem é bom pensar.
Gomide tinha qualidades, claro, ninguém é totalmente desprovido delas, e Gomide não era exceção. Ele não negava convite de seus amigos, estava sempre disponível pra eles fosse qual fosse o programa, isso o tornava muito bem quisto por seus camaradas.
Gomide tinha uma lábia que muitos consideravam irresistível, nos bailes frequentados por Gomide, não havia moçoila capaz de resistir á seus encantos, diziam seus conhecidos. Exagero, claro. Gomide era bom de papo, mas muito de seu sucesso estava no radar bem ajustado de Gomide, que jamais desperdiçava saliva com mulheres que estivessem além de sua categoria. Á essas, quando desafiado por seus colegas de botequim, desdenhava. Dizia que eram frias, que não sabiam viver, que eram artificiais. Despeito, claro. Mas estratégicamente posicionado.
Gomide não era um vagabundo, trabalhava, havia passado por dezenas de empregos ao longo de seus quarenta e tantos anos. O problema de Gomide é que o compromisso que tinha para com a diversão e o lazer jamais se repetia, mesmo em grau reduzido, em sua vida profissional. Gomide media seu empenho pelo dos outros, jamais trabalhando mais ou menos do que seus colegas, de modo que vivia estagnado, mas confortável o suficiente para seus próprios parâmetros, nada elevados, que consistiam em pagar suas contas de luz e água, cervejinha, cigarros, três refeições por dia, e roupas decentes além de um ou outro mimo presenteado á si mesmo.
Um dos luxos aos quais Gomide não se furtava eram os jogos em casa do seu time do coração. Gomide adorava futebol, se envolvia em discussões apaixonadas com outros desocupados á ponto de berrar, ficar vermelho e cheio de veias saltadas pela testa e pescoço enquanto cuspia e resfolegava entre um impropério e outro, era, de fato, um apaixonado.
Nas quartas-feiras á noite Gomide estava invariavelmente ou em frente á TV do boteco ou no estádio. Aquela temporada, entretanto, não estava indo bem pra Gomide e seu time, que amargava (Ou amargavam, pois Gomide se referia á seu time como "nós", incluindo-se na agremiação.) uma tenebrosa lanterna e com a aproximação ininterrupta do final do certame a sombra ameaçadora de novo rebaixamento deitava-se sobre Gomide e seu time de forma quase inapelável. Seria necesário um milagre matemático para escapulir do descenço, mas Gomide cria que seria possível. Enfrentaria em seus domínios um time do nordeste, reconhecido pela torcida apaixonada e pelo futebol medíocre, e que tinha um histórico de derrotas memoráveis contra o "Glorioso", apelido carinhoso e nada modesto com o qual Gomide referia-se á seu clube do coração.
Munido de camiseta oficial e bandeira, Gomide foi ao estádio destilando confiança, era o momento da reação.
Infelizmente o futebol do time de Gomide permanecia tão melancólico quanto fora durante todo o torneio. E Gomide, que já fumava demais, fumou em dobro, nervoso que estava diante do papel fisquento que fazia o "Glorioso" em seus domínios. O golpe de misericórdia veio aos 27 do segundo tempo, quando o time visitante, aproveitando-se de falha generalizada na defesa dos donos da casa, fez 0 x 1. Muitos saíram, Gomide os olharia com desaprovação e desdém se conseguisse desgrudar os olhos mesmerizados do gramado em sua torcida contrita.
Porém, nenhuma reação heróica ocorreu, e aquele foi o placar definitivo do match.
Ao final do jogo, cabisbaixo, Gomide saiu do estádio alheio aos protestos de torcedores que o cercavam. Levou a mão ao bolso procurando por seu maço de cigarros, estava vazio. Gomide amaldiçoou á si mesmo por ter jogado um pito quase inteiro fora em uma oportunidade desperdiçada por seu time durante o segundo tempo. Vasculhou outro bolso, encontrou o dinheiro, e resolveu dirigir-se á uma loja de conveniência para comprar mais cigarros, com toda a dor que sentira naquelas últimas duas horas não se privaria daquele raro prazer.
Entrou no estabelecimento, e dirigiu-se ao balconista apontando sua marca favorita, quando notou, atrás de si, o jovem de pouco mais de 15 anos que, empunhando um revólver 38 envelhecido, disse com voz esganiçada:
-Dá o dinheiro, véio. E a camisa! Ligeiro!
Era um abuso, Gomide fora um jovem parrudo e ágil que brigava com maestria, envelhecera na ilusão de ser mais homem que outrem, e não tolerava o que considerava como abusos, geralmente bastavam berros para mostrar o quanto era macho, mas se fossem necessários sopapos, Gomide os distribuiria com prazer, frustrado que estava.
Mandando a cautela lá pra casa do Capita olhou com fúria para o pretenso assaltante, e deu um passo em sua direção, ouviu o estouro seco da pólvora, sentiu frio, e desequilibrou-se. Caído, não pôde reagir enquanto o fedelho tirava a carteira de seus dedos moles, nem quando ele fugiu após disparar contra o balconista.
Enquanto sentia a vida se esvair de seu corpo junto com o sangue que se empoçava sob si, pensou:
-Bem que minha mãe me disse que o cigarro ia acabar me matando.

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