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terça-feira, 27 de julho de 2010

Calor.


Era um dos meses de janeiro mais quentes dos últimos anos. Lá pelas três, quatro da tarde, a temperatura batia fácil na casa dos trinta e sete graus, ficar sentado, dentro de casa, diante do ventilador fazia suar. Ficar sentado, dentro de casa, embaixo do ventilador com o traseiro dentro de uma bacia de gelo podia ser agradável, mas só até o gelo derreter, e o gelo derretia rápido.
Andar no centro da cidade era tarefa pra poucos... Bom, isso não é verdade, era tarefa pra todo mundo que não estava na praia e precisava trabalhar, mas era tarefa desagradável e que demandava preparo atlético de maratonista senegalês.
E, por alguma razão, um dos melhores amigos do Anderson resolveu casar justamente naquele mês, e convidou Anderson para ser padrinho.
E Anderson se viu diante de uma sinuca por duas razões:
Primeiro, ele era o cara que mais detestava calor entre todos os detestadores de calor do mundo. Anderson era o tipo de sujeito que, se tivesse dinheiro e disponibilidade de tempo, passaria os meses de novembro a maio na escandinávia, que gostava de usar casaco com camiseta de manga curta no inverno pra sentir melhor o frio que entrava pelas mangas do agasalho, que independente dos sete graus dos meses de junho e agosto corria de calção e camiseta na beira do Guaíba, e teria que comparecer á um evento social num mês em que as temperaturas superavam, de barbada, os trinta graus, mesmo à noite.
A segunda razão, é que Anderson foi convidado pra ser padrinho do casamento. E Anderson era um misantropo, niilista, descrente e cético de carteirinha, que considerava a amizade entre homem e mulher um engodo, a família uma instituição falida e achava que a única maneira de o homem (enquanto gênero) ser mais cachorro, seria sendo fiel, o que era, na opinião dele, impossível, pois o homem (enquanto gênero) era programado biologicamente para a poligamia, de modo que a única coisa que Anderson desprezava mais do que casamentos, eram batizados, pois como bom niilista, descrente, cético e misantropo, Anderson era ateu, mas isso não vem ao caso.
A questão, na verdade questões, eram que Anderson deveria atender á uma cerimônia religiosa, que celebraria diante das famílias de ambos membros do casal, a união de seu amigo Teobaldo à uma moça que ele não conhecia, com a promessa de fidelidade inabalável até que a morte os separasse. Tudo isso durante uma noite de sábado, em janeiro, numa cidade vizinha à Porto Alegre, e com Anderson sendo obrigado á vestir terno e gravata.
Não havia, no mundo, modo de aquele programa ter menos a cara de Anderson. Mas, como era o casamento de Teobaldo, um cara que ele conhecia desde os quatorze anos de idade, que era um de seus amigos mais antigos, com quem ele crescera e se criara jogando bola e brincando na rua perto de casa, Anderson aceitou sem pestanejar agradecendo, honrado, pelo convite.
Foi apenas mais tarde, quando batia perna pelo centro com o calor de 35 graus lhe fazendo suar em bicas atrás dos estranhos presentes que ainda estavam na lista, que Anderson imaginou se não deveria ter mandado Teobaldo pensar melhor se queria mesmo se casar, talvez fazer um período sabático por um tempo, até, digamos, julho, para só então decidir se queria mesmo dar um passo tão importante e definitivo.
Se isso desse mais tempo para Anderson procurar aquele saleiro maluco, ou aquele jogo de bolo, ou então, perguntar se o casal não preferia um micro-ondas ou uma lavadora de louça, que eram muito mais fácil de encontrar, tanto melhor, se o casal pensasse melhor em todo o ridículo da situação e resolvesse que o casamento era apenas uma imposição tola de uma sociedade ancorada á valores retrógrados e que pouca utilidade tinha na nossa atribulada realidade ocidental, melhor ainda.
Mas ele resolveu fechar o bico e seguir procurando pelas peças em questão, também se mexeu e comprou um terno para o casamento, embora a simples ideia de colocar uma peça de roupa sobre outra e ainda envolver seu pescoço com uma gravata o deixasse às portas do pânico. Anderson encontrou os presentes da lista, também comprou um terno preto com risca-de-giz, coisa de mafioso, e usaria-o com camisa branca e gravata vermelha, beleza, não era a combinação do traje que o incomodava, era a combinação do traje com o calor do verão Porto-Alegrense.
Anderson, manteve-se em silêncio, apoiando seu amigo, o que lhe pareceu ser seu papel como padrinho.
Na noite da cerimônia, Anderson estava lá, perigosamente próximo da desidratação, tanto era o suor que lhe escorria pelas costas e peito, mas sorriu, apertou muitas mãos, conheceu a amiga da noiva que seria seu par entre os nove (!!!) casais de padrinhos do casal, e soube que, durante a cerimônia, ficaria em pé, à direita do noivo e de braços dados com a madrinha, tudo isso, e aí veio o momento de maior pânico de Anderson, sob os holofotes que iluminariam o altar.
Anderson, o maior detestador de calor entre todos os detestadores de calor do mundo, vestindo terno, gravata e suspensórios, permaneceria durante a cerimônia sob as escaldantes luzes de refletores, de braços dados com outro ser humano que irradiaria seu calor próprio.
Anderson engoliu em seco. Foi até o lado de fora do local da celebração, juntou-se á seu par, e caminhou pelo corredor, posicionando-se EXATAMENTE sob um dos holofotes.
O noivo estava no altar, o pastor também. A noiva entrou ao som da marcha nupcial, ambos ajoelharam-se em frente ao clérigo, Anderson pensou se poderia se ajoelhar, também, não tanto por reverência, mas para desviar-se dos raios de calor que emanavam da lâmpada sobre sua nuca, entretanto teve que se manter de pé após a madrinha impedí-lo de se abaixar.
O pastor começou, então, um longo, longo, longo discurso ácerca de todas as responsabilidades dos cônjuges em um matrimônio. Todas.
Anderson sentiu seu cérebro adormecer por conta da exposição do calor ainda nos primeiros quarenta e cinco minutos de discurso do pastor, não que ele estivesse ansioso por ouvir o que o religioso tinha á dizer sobre casamentos. Durante o tempo em que esteve prestando atenção no que o sujeito falava, em pelo menos vinte e oito oportunidades Anderson pensou em maneiras de contradizer as palavras que saíam da boca do ministro, mas manteve-se quieto, tanto por que não fazia parte daquela congregação quanto por que não seria delicado bradar aos quatro ventos que o casamento era uma esdrúxula arma nas mãos de uma sociedade patriarcal obsoleta, arraigada em valores morais duvidosos, e que servia unicamente para os homens manterem uma ilusão de controle sobre as mulheres sem precisar prestar contas de seus próprios atos libidinosos. Anderson, então, permaneceu em silêncio, e imóvel, sem se mexer sequer para esfregar a mão na testa e secar o suor que lhe escorria dos cabelos, derretendo seu gel e lavando o perfume Ralph Lauren que ele comprara apenas para a ocasião. Não se mexeu nem quando o suor escorreu por seu cabelo, correu pela haste dos óculos e desceu pelo lado de seu nariz fazendo cócegas.
Apenas quando o pastor proclamou que declarava os pombinhos marido e mulher, Anderson se mexeu, direto até o banheiro, onde lavou o rosto, as mãos e a nuca com água fria, maldizendo a tolice de pessoas que não só se casavam em pleno janeiro escaldante, como ainda insistiam em se casar nos dias de hoje.
Ele ficou ainda mais emburrado quando, na fila do buffet, ficou atrás de uma tia gorda da noiva, que com eus vestidinho florido de verão, podia demorar-se á vontade próxima dos pratos quentes enquanto caçava impiedosamente todos e cada um dos salgadinhos de camarão nas bandejas, luxo ao qual Anderson não podia dar-se, afinal, só de chegar perto do buffet, já estava suando em bicas, uma vez mais.
Anderson foi se enfurecendo com os sorrisos, com os tapinhas nas costas, com as felicitações requentadas de todos que ali estavam, e foi se perguntando se, de fato, vida inteligente dominava a Terra, uma vez que aquele pastiche depunha contra toda a capacidade intelectual da raça dominante em nosso planetinha insignificante.
Com amargura e suor abundantes, Anderson andou pelo salão evitando madrinhas solitárias com quem não queria dançar, e bebendo tudo que lhe oferecessem e estivesse em temperatura inferior á ambiente, o que era relativamente fácil.
No momento da despedida, Anderson preparou um pequeno, mas feroz discurso anti-família, sociedade, casamento e humanidade de modo geral, que pretendia sussurrar no ouvido de Teobaldo quando ele lhe estendesse a mão.
Parou em meio ao corredor humano de gente risonha e arremessadora de arroz, e, assim que Teobaldo lhe estendeu a mão, puxou-o para perto de si. Teobaldo o olhou nos olhos e lhe agradeceu por participar do dia mais feliz de sua vida.
Anderson viu o sorriso de Teobaldo, percebeu quão radiante estava Daniela, sua noiva, e abraçou o amigo agradecendo-lhe pela oportunidade.
Enquanto olhava o casal entrar no carro para a curta lua-de-mel que os esperava antes de retomarem seus afazeres em sua corrida rotina, Anderson não pôde deixar de pensar em que tolice aqueles dois estavam fazendo, mas, se os deixara satisfeitos, se lhes permitiu colher alguma alegria, se eles partilharam, ou ao menos tiveram a intenção de partilhar essa alegria com seus amigos e parentes... Quem era Anderson, niilista, descrente, misantropo e chato de carteirinha para se queixar?
Enfim, se desse errado, no futuro ele poderia sorrir para o lado e proclamar que já sabia, e, se desse certo, estava, de fato, feliz pelo amigo, e o calor que sentia dentro de si não era particularmente desagradável.

Um comentário:

  1. Bem, gostei do Anderson, primeiro porque odeio calor, quase tanto quanto ele, uma vez que ele é o maior odiador do calor entre os odiadores... Segundo, porque odeio casamentos, batizados e festas infantis (quer coisa mais chata que esses três alem de calor portoalegrense???
    Esses rituais arcaicos que nossa sociedade teima em perpetuar, é a tradição, o trazer de novo... pena que não repaginado!!!
    Mas sinto dizer que tudo que amamos ou odiamos veementene fazem parte do mesmo afeto, da mesma moeda!!!
    "Ele ama e também odeia o anel".
    Há vida sem casamentos, é possível conviver sem fornicar e é ainda possível amar apesar da humanidade ser o que é!!! Amar é, egoisticamente, encontrar algo de si no outro.

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