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sexta-feira, 16 de julho de 2010

Novo Mundo.


Ele, nos seus quarenta e cinco, cinquenta anos. Senta em uma banqueta desconfortável do lado da cama dela, ela, com seus sete, quiçá oito anos de idade. Ele senta, afaga sua cabeça enquanto ela se ajeita na cama. Ela se posiciona sob as cobertas e o olha com alguma ansiedade. Ele começa:
-Era uma vez...
-"Era uma vez"? Sério isso, pai?
-Quê? É assim que se começa uma história.
-Quié isso, pai, te liga. Não é assim que se começa uma história faz séculos...
-Do que tu tá falando, guria? Toda a vida se começa uma história desse jeito. "Era uma vez..." e daí se dá sequência.
-Não, pai, era assim, era. E já faz tempo.
-Tá. Eu mudo o começo, então. Houve um tempo-
-Mas isso é igual a "era uma vez".
-Quem é que tá contando a porcaria da história?
-Tu, mas tu tem que pensar em cativar teu público alvo.
-Cativar meu... Cativar o público alvo. OK. Tu é meu público alvo. Como tu gostaria que eu começasse a história?
-Ah, sei lá... De uma maneira menos batida, puxa, parece que a gente tá no século passado...
-Eu nasci no século passado.
-E eu no novo milênio, pai. Mas tudo bem. Se tu não quer investir na nossa comunicação e vai deixar que eu cresça com os traumas causados por uma criação carente de uma presença masculina mais ativa, o que pode acarretar um sem-número de problemas na minha maturi-
-Tá, tá, chega. Eu começo a história de outro jeito, tá bem?
-Tá.
Ele respirou fundo, se ajeitou na banqueta tentando minimizar os danos que ela inevitavelmente causaria na sua coluna, e começou empostando a voz:
-O prícipe estava cavalgando nos campos que circundavam o reino de seu pai, era um-
Ela suspirou e afundou no travesseiro.
-Hmmnnn...
-O quê foi, agora?
-Nada, não, pai. Continua.
-Era um dia ensolarado, mas nuvens negras e espessas se avizinhavam no... Não. Tu deu uma resmungada. O que houve?
-Nada, eu não resmunguei.
-Resmungou, sim. O que foi?
-Nada é só... Príncipe, pai? Sério? Príncipe? Tu vai centralizar a tua história em uma figura tão estabelecida, batida e pouco carismática, como um príncipe?
-Vai ter mais coisas, além do príncipe... O que tem de errado com príncipe?
-Ah, pai... Todo o conceito de realeza que essa imagem evocava no passado se perdeu nos dias de hoje, né? Olha as famílias reais com as quais a nova geração tem contato. São todas decadentes, alvos de tablóides e revistas de fofocas. Ninguém mais acredita na nobreza das realezas estabelecidas atualmente, nem nas realezas do passado, que, como mostram os historiadores já estavam muito mais pra saqueadores vestidos com seda e ouro que qualquer outra coisa, isso quando estavam vestidos com seda e com ouro.
Ele não era capaz de esconder o próprio choque. Era informação demais. Ele levara uns bons quinze anos pra perder o encantamento com príncipes, reis e princesas.
-Onde foi que tu aprendeu isso, guria?
-Ai... Rélo-ôu! Na internet, né, pai? Milhões, bilhões, trilhões de informações na ponta dos dedos.
-Meu Deus do céu...
-E nem queira entrar no conceito de religião, pois é outra coisa que-
Ele não queria mais ouvir aquilo, precisava mudar o rumo da conversa:
-Tá, parou. Que tipo de herói tu gostaria de ter na tua história?
-Sei lá, pai. Alguma coisa que não seja óbvia como um príncipe. Pode ser... Sei lá, um vampiro.
-Vampiro? Mas vampiro é um monstro chupador de sangue.
-Era, pai. Vampiro era um monstro chupador de sangue. Hoje em dia os vampiros são rapazes sensíveis e vegetarianos que se apaixonam e defendem a mulher amada com unhas e dentes.
-Nisso de defender com os dentes eu até acredito, ah, ah, ah, ah, ah.
-Pai...
-Tá, desculpa. Mas é um conceito muito sem-graça. Cadê os vampiros que eu conhecia? criaturas desalmadas, de pele pálida, que à luz da lua saíam de seus caixões para saciar sua sede de sangue no pescoço dos incautos?
-Esse conceito também ficou no passado.
-Puxa, e eu gostava tanto do Drácula.
-Ah, eu também.
Seu rosto se iluminou, finalmente ele e a filha tinham algo em comum.
-Sério? Que bom. Pensei que o Drácula tivesse ficado no passado.
-Capaz, pai. Todas as meninas adoram o Drácula, ele é lindo.
-Pôxa, quem diria... E eu achava aquele ator tão feio.
-O Gary Oldman?
-Não, o Christopher Lee.
-Quem é esse?
-Esquece.
-Olha pai... Deixa pra lá. Eu leio alguma coisa antes de dormir e pronto. Pode deixar.
Ela se debruçou e apanhou um grosso volume que estava sob a cama. A capa era negra e tinha uma fita vermelha rasgada esvoaçando. Ele se levantou da banqueta apanhando-a, beijou a filha na fronte e caminhou para fora do quarto. Fechava a porta quando teve um estalo. Deu meia volta e entrou novamente, tirou o livro da mão da filha e posicionou a banqueta onde estava antes. Respirou fundo e começou a falar:
-Samuel, Sam, para os amigos, andava pela rua tentando proteger-se da chuva sob as marquises da parte mais velha e dacadente da cidade, alheio aos perigos que o cercavam. Quando saíra da cama naquela manhã, ele mal imaginava o que o aguardava pelas próximas vinte e quatro horas...
A menina se endireitou na cama e o olhou, á princípio com pouco caso, mas foi empolgando-se conforme o pai usava todas as habilidades ao seu alcance para tornar aquela narrativa mais e mais interessante.
Ele misturou elementos de 24 Horas, Serpico e Romeu & Julieta, seu personagem ganhou as feições e o físico de James Franco quando a menina perguntou se ele era gato, o vilão da trama, um traficante de sangue que matava meninas na Bielorrússia para suprir vampiros enrustidos nos Estados Unidos, tinha o charme, os trejeitos e o sotaque de Jude Law, e a mocinha, Natalia, era uma jovem bielorrussa que escapara por pouco de ter o mesmo fim das irmãs nas mãos do vilão, lutava Krav-Magá e entrava na pancadaria tanto quanto o herói.
A história se desenrolou passando por bairros industriais onde o crime estava em cada esquina, lugares exóticos como Tahiti e Havaí, houveram confrontos físicos, romances proibidos que não se consumavam e frases de efeito.
O pai ilustrou tudo, correu pelo quarto enrolado em cobertas, chutou a mobília e praguejou em ídiche quando interpretava um mendigo judeu, em mais de uma oportunidade a mãe da menina teve que ir ao quarto e pedir que o marido baixasse a bola.
O pai usou referências da trilogia Bourne para narrar as lutas, cantarolou Johnny Cash para embalar a dança do casal protagonista, e finalizou a trama com um confronto épico dentro de uma estação orbital soviética desativada, que culminou com um sabre-de-luz atravessado no peito do Jude Law vilão, empunhado pela mocinha, não pelo herói.
A menina adorou. Quando terminou disse que precisava tomar um copo d'água para se acalmar e dormir. Abraçou o pai, deu-lhe um beijo, e disse antes de ele apagar a luz:
-Tu é o pai mais foda do mundo.
Ele pensou em repreender o palavrão, mas a Pitty já tinha estabelecido essa palavra com "F" como normal no vocabulário jovem, e, pra ser franco, ele estava feliz demais com o elogio.
Largou a banqueta na cozinha, e se encaminhou para o sofá, onde veria um pouco de TV antes de dormir. Ele vivia em um mundo que ainda não entendia totalmente, e que mudava todo o dia, em que sua filha de sete anos, com meia dúzia de cliques em um mouse acessava informações que ele levara anos para descobrir, onde vampiros eram heróis românticos e vegetarianos e príncipes eram figuras pouco recomendáveis. Ele era um dinossauro num mundo de atualizações minuto a minuto, e pouco entendia das regras que mudavam a todo o instante, mas uma coisa ele sabia:
Ele não entregaria a criação de sua filha à Stephenie Meyer sem luta, ah, não mesmo.

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