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quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Animal Interior


Na mesa do bar, música alta, pratos e talheres sujos sobre a mesa, vários copos e garrafas vazios, também. Everaldo já havia bebido um pouco demais, e, como todo bebum que se preza, começara a dissertar a respeito de quase tudo. Ao seu lado, na mesa, o Paulo Roberto só ouvia:
-Tô te dizendo, Pê Erre, dois mil e doze, os Aztecas já sabiam, é o fim do mundo.
-Não eram os maias?
-Tanto faz, Pê Erre, tanto faz, a questão é que o mundo vai acabar, vai acabar tudo. Vulcões se erguerão cuspindo lava incandescente no centro de grandes cidades, o mar vai engolir o nosso litoral inteiro, montanhas vão ser varridas de seus berços pedregosos e serão jogadas bem em cima da tua casa!
-Porque da minha?
-Não... Não, burro. Da "tua" quer dizer da raça humana, tá ligado? A humanidade lá, fazendo suas coisinhas mundaninhas, comprando seu carrinho em setenta e duas parcelas, colocando botox, tomando Viagra, viajando pra Argentina pra aproveitar a baixa do Dólar, vivendo essa existenciazinha estéril, inútil, obnubilada, achando que faz parte de algum plano maior e BANG! O mundo acaba. Acaba tudo. Pessoas que não morrerem quando a terra se abrir sob seus pés, rá, meu amigo, essas vão se dar ainda pior. Escreve o que eu tô te dizendo. Gente que nem tu, que encomenda livro em livraria, que compra presente de natal com um mês de antecedência, que cultivam a civilidade e o conforto, esses são os que vão sofrer mais, é... Vão estar se sentindo como? Como, na hora em que tiver que bater com um pistão enferrujado na cabeça de uma velha pra comer o cachorro de estimação dela? Hein?
-Depois de tudo isso como é que a velha sobreviveu? Não, como é que o maldito do cachorro sobreviveu?
-Retórica, caráleo! Era uma figuagem de lingura... Figura de linguagem... Porra. Enfim, tu entendeu. Tu leva essa coisa de civilidade á sério demais. Todo educado, preocupado com os outros. Como é que tu vai entrar em contato com o teu animal interior e apunhalar um pai de família na frente dos filhos dele pra roubar o casaco dele e se manter quente?
-Que horror, Everaldo. Por que eu faria uma coisa dessas?
-Pra não morrer, Pê Erre! Pra não morrer. Imagina o cenário: Uma camada violenta de fumaça sobre o céu, noite vinte e quatro horas por dia, a vida na terra sucumbindo pela falta de luz e de calor, e tu tá ali, congelando, os pés molhados, congelando vestindo só uma camisa da Renner, tu sabe, no teu íntimo, que se não te aquecer, morre. Aí passa um cara, mais velho que tu, mais fraco. Com um casacão. Tu não quer aquele casaco?
-Eu, não. Preciso é de um chapéu. Tô ficando careca e a maior parte do calor do corpo se perde pela cabeça.
-Puta que o pariu... Tu já tem um chapéu, Pê Erre, mas tá com frio no peito, nos braços... Ali tá o casaco, tu quer?
-De que marca é?
-Vai te foder, Pê Erre! Vai tomar no rabo. É um casaco quente.
-Mas a camisa é da Renner, não é o bicho, OK, mas e se o casaco for da Gripon? Não vale a pena trocar...
-Não é pra trocar, meu! É pra agregar o casaco dele à tua camisa da Renner.
-Ah...
-Aí tu te aproxima, desesperado, armado com a tua faca-
-Onde eu arrumei a faca?
-Na cozinha, porra.
-E lá não tinha comida? Eu podia comer e assim, teria calorias pra queimar sem precisar apunhalar um pai de família na frente do filho dele.
-Não! Não tinha comida, já tinham pegado a comida.
-Quem?
-Outros sobreviventes, porra.
-E eles não pegaram a faca?
-Não...
-Por que?
-Porque eles tinham facas, já...
-Eu acho que eu vou seguir esses caras. Eles são bons nisso, acharam a comida e já tinham facas. Eu me junto a esse grupo e não preciso apunhalar ninguém.
-Vai te foder, Pê Erre... Eu tava falando sério, te propondo uma questão profunda e filosófica ácerca da natureza humana...
-Tu tá é bêbado, Everaldo.
O Everaldo ficou quieto, admirando os desenhos de círculos de água que improvisava com a base molhada de seu copo de cerveja. Nisso, o Paulo Roberto olhou pro lado, e viu a Ritinha entrar no bar com o namorado novo. Um cara mais ou menos da mesma altura que ele, mas com mais cabelo, e sem óculos. Naquele instante, ele desejou que uma hecatombe de proporções bíblicas houvesse acontecido. Que Ritinha estivesse com frio e aquele cabeludo imbecil não tivesse um casaco pra dar pra ela. Sim, Paulo Roberto apunhalaria o pai de família no fígado, mataria o filho dele, também. Arrancaria a pele dos dois e faria uma roupa de pele humana pra se proteger do frio e ofereceria o casaco á Ritinha. Segurava a faca firmemente entre os dedos. Olhou pro Everaldo, que o encarava com cara de quem tinha razão.
-Tá aí o teu animal interior...
-É. E é um bicho chifrudo. -Respondeu Paulo Roberto largando a faca.
Pediu a conta. Quando os discursos de bêbado do Everaldo começavam a fazer sentido, era melhor ir embora.

3 comentários:

  1. hahahaha me identifiquei muito com o Everaldo, com excessão de que ele bebe horrores e fala muito palavrão, nós somos hiper parecidos ! Ele é chato, exagerado, viaja na maionese e troca as letras das palavras ''figuagem de lingura'' haha, igualzinho á mim !!
    E é por aí mesmo, no amor, na guerra e, em cenários pós apocalípticos, vale de tudo um pouco !

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  2. GRIPON?
    CAPITA!
    GRIPON!!!
    realmente, o cara tinha que pensar se esfaquearia pra pegar a roupa...
    Eu não posso ficar calada frente a isso: GRIPON!!!
    Nada me impressionou mais que essa loja no teu rico vocabulário... (tu andou muito na Volunta, hein! Era lá que comprava presentes pro amigo secreto de Natal!!!)

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  3. Laís, quem de nós não tem um amigo (bêbado, ou não, desbocado, ou não...), que viaja na maionese e troca as letras das palavras?
    E, lady Bast, sim, andava horrores na voluntários, mas não era pra fazer compras, nem negócios de nenhuma espécie. Era apaixonado por uma moça que trabalhava em uma loja de esportes de lá...

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