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quarta-feira, 6 de julho de 2011

O Frio da Incerteza


Foi com pesar que o Alceu encarou o relógio e constatou que já eram duas e cinquenta e sete da madrugada daquela noite glacial. Sair de sob as cobertas doera fisicamente nele. Não que ele não gostasse do frio por conta disso. Não. Alceu era dessas pessoas capazes de sentir um certo prazer no desconforto. Uma certa alegria na dificuldade. Provavelmente reflexo de anos de desconforto e dificuldades aos quais ele fora exposto enquanto se tornava a meia-pessoa que hoje era.
Alceu levantou-se com dificuldade de sob as cobertas. Sentiu o ar gelado açoitar-lhe as pernas descobertas e sorriu. Usava um calção branco e preto do time do Santos que devia ser mais velho que o Neymar, mas era de estimação, e era muito confortável. Quando seus pés descalços tocaram o chão, ele sentiu a onda de frio se esticar da sola dos pés até os cabelos. Pensou que bateria os dentes de frio, mas cerrou o maxilar com força, evitando tiritar. Levantou-se sob os protestos rosnados de seu cachorro que estava sob as cobertas e não gostara da ideia de ser descoberto. Cobriu o cão com cuidado, e andou trôpego até o banheiro. Escovou os dentes, e passou água no rosto. A sensação de ser esfaqueado nas bochechas não podia ser muito diferente, mas ao menos estava mais desperto. Caminhou de volta rumando para a cozinha, deteve-se brevemente em frente ao rack da televisão. Vislumbrou uma foto em um porta-retratos customizado do Homem-Aranha. Não conseguiria evitar o sorriso mesmo se tentasse. Andou até a cozinha, tomou dois comprimidos, um anti-inflamatório e um analgésico empurrados goela-abaixo com um gole de Coca-Cola. "O desjejum dos campeões", pensou. Comeu dois biscoitos Bono, recheados com morango de dentro de um jarro. Horríveis.
Lavou o copo. Como a água doía em contato com a pele, pensou. Voltou à sala terminando de secar as mãos na camiseta. Sentou-se no sofá. Mirou a foto novamente. Dessa vez não sorriu. Não fez mais nada. Mirou a foto por alguns minutos esfregando a mão esquerda no braço direito. Lembrou dela. De uma noite fria em que fora feliz mesmo sem cobertas sob um ventilador. Uma noite em que não se mexeu como se fosse acossado por bichos carpinteiros. Uma noite em que tudo fez sentido. Apanhou o celular que estava na mesinha do telefone ao lado do fixo. Abriu a caixa de mensagens e navegou até a pasta com o nome dela. Estavam lá. Todas as mensagens. Talvez, pensou ele. Talvez fosse melhor deixar as coisas caminharem. Dar o próximo passo. Ser capaz de ser feliz por ela. Deixá-la ir, fazer suas coisas, viver o que havia pra ser vivido sem um pálido e distante fantasma a assombrá-la. Tocou no display do aparelho, selecionando a primeira mensagem da lista. Sorriu enquanto lia o recado. Moveu o polegar e tocou no ícone em forma de lata de lixo no pé da tela.
"Tem certeza de que deseja excluir essa mensagem?" perguntou-lhe o aparelho, friamente em letras brancas sobre um fundo vermelho.
Tenho? Perguntou-se Alceu.
Escorou-se sobre o sofá, puxando sobre as pernas uma colcha que jazia dobrada sobre o encosto. Largou o celular e ligou a televisão na Globo News. Esticou a mão sobre a pilha de revistas posicionada no vão sob a mesa do telefone e puxou um volume encadernado. Adormeceu novamente enquanto lia os dois últimos capítulos de Superman - As Quatro Estações. Acordou horas mais tarde enquanto seu telefone vibrava ao som de Beachwood Sparks, com o corpo encolhido sob o frio da madrugada, e o coração encolhido sob o frio da incerteza.
Aquele dia seria uma droga...

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