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sexta-feira, 8 de julho de 2011

Tentando Melhorar



Uma vez, quando era criança, o Genaro acompanhado de seu primo mais velho, Jonathan andava pelo quintal da casa de praia de sua avó quando encontraram um morcego oculto sob arbustos de hortênsias em uma tarde de verão. O bicho estava em frangalhos, tentando desesperadamente se proteger da luz do sol. Genaro sempre teve aflição com morcegos, já não tinha, aos sete anos, a ideia equivocada de que morcegos fossem vampiros, sabia, inclusive que eles eram responsáveis pela polinização de flores, disperção de sementes e que eram predadores de insetos. Ainda assim, as asas de pele quase translúcidas, os braços alongados e o nariz revirado dos morcegos lhe causavam repulsa.
E foi com repulsa na voz que Genaro disse a Jonathan, enquanto colocava as mãos para trás do corpo por reflexo, ainda que estivesse distante quase um metro do animal, que deixasse o animal onde estava. Genaro não escondeu as mãos por receio de tocar no morcego. Ao menos não específicamente. Genaro tinha medo de tocar em qualquer criatura viva.
Genaro, já tocara em outro animais. Gatos, coelhos, cachorros... Mas sempre tocava da mesma forma: Com a ponta do dedo indicador esticado. Com o braço esticado, e, normalmente oferecendo o corpo de lado ao seu alvo, como fazem os grandes zagueiros ao marcarem um adversário habilidoso, ou os pistoleiros do faroeste ao enfrentar um adversário no duelo.
Genaro era ruim de contato. Muito ruim de contato.
Jonathan era diferente de Genaro. Não que fosse amante de morcegos, ou que não tivesse receio de tocar em animais de qualquer espécie.
Ele tinha.
Especialmente com relação a morcegos. Mas era, como já foi dito, diferente de Genaro. Com dois galhos de madeira, Jonathan apanhou o morcego de sob as sombras acolhedoras do arbusto de hortênsias, e, equilibrando o animal, o carregou como pôde até um recipiente de plástico com tampa, onde o prendeu.
Fez tudo isso sob os protestos de Genaro, que pediu o tempo todo que Jonathan deixasse o animal em paz. Mas Jonathan não o fez.
Pelo contrário. Com o quiróptero preso dentro da embalagem plástica, o levou para a rua, onde, diante das demais crianças do quarteirão, o bicho foi exposto como um troféu. As crianças bolavama brincadeiras onde o morcego era um vampiro capturado. Um pterodáctilo assassino. A cobaia de um experimento para acabar com monstros que infestavam a vizinhança.
Em todas as ideias o morcego foi um vilão, e como vilão foi tratado. Sendo sacudido, molhado, cutucado e espetado. Em meio a todos os gritos, alarde e à esposição ao sol inclemente, o morcego foi deixando de se movimentar, ficando mais e mais estático. Foi quando Jonathan bradou que, o momento era de dar cabo do animal, e perseguido por um séquito de infantes acéfalos, marchou até os fundos da casa abandonada do seu Mauro, onde jogou o morcego dentro de um balde, e posicionou o recipiente sob a torneira do tanque de lavar roupas.
Enquanto o balde se enchia d'água com o morcego lá dentro, Genaro, com lágrimas nos olhos, sentia como se fosse nele próprio a agonia experimentada por aquela criatura. E, como ele não estava sendo acossado pela luz do sol, nem estava enfraquecido por ter sido exposto a sevícias de nenhuma espécie por uma corja de sádicos, decidiu que cabia a ele pôr fim áquele prepóstero. Juntando tudo o que tinha de auto-respeito e dignidade, Genaro caminhou a passos firmes, que se tornaram uma decidida corrida, e por fim uma carga inexorável em direção ao algoz do morcego, Jonathan, que pagaria diante de seus asseclas pela sua crueldade.
Porém, era uma praia pequena do litoral norte do Rio Grande do Sul em meados de mil novecentos e oitenta e sete, não uma fortaleza rebelde dominada pelo império galáctico. Genaro era apenas um moleque de sete anos de idade usando calções azuis e uma camiseta amarela do Homem-Aranha, e não um glorioso paladino de Dol-Amroth trajando uma brilhante armadura. E Jonathan, por mais que estivesse executando uma ação que era um claro sinal de psicopatia futura, era só um moleque sádico, e não um déspota vil. Aquele não era um cenário para milagres, nem para confrontações épicas, ou para mudanças definitivas de rumo.
Genaro errou seu ataque. Apanhou de Jonathan, e de mais um ou dois moleques. Gabriel, e Márcio, talvez, ele não viu pois estava no chão. Não chorou. Ficou ali, abraçado nos joelhos, ouvindo o alarde das crianças enquanto o morcego se cansava de lutar para permanecer à tona e abraçava a morte por afogamento no fundo daquele balde velho nos fundos da casa do seu Mauro. Depois que as crianças foram embora, deixando o animal no balde, Genaro caminhou até lá. Esvaziou o recipiente, e com a ajuda de uma pá de plástico, carregou e enterrou o morcego na beira da praia. Pra ele, depois daquela tarde de suplícios, o animal merecia alguma deferência. Enquanto encarava a cova improvisada nas dunas, Genaro não pôde deixar de pensar que talvez, se não fosse tão ruim de contato, ele pudesse ter feito algo por aquele animal. Algo além de colocá-lo em um buraco cavado com uma pazinha roxa nos cômoros.
Mais de vinte anos depois, Genaro ainda é muito ruim de contato.
Mas está mais forte. E tentando melhorar.

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