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sexta-feira, 15 de julho de 2011

Sundae


O Afonso e o Lúcio saíram da sorveteria cada um com um sundae na mão. Encaravam as guloseimas com um sorriso. Não que estivessem particularmente esfaimados, apenas foram surpreendidos pelo calibre da sobremesa. Era um sundae imenso. Eles tinham entrado quase ao acaso na sorveteria para aproveitar aquele incomum dia de dezenove graus em pleno inverno gaúcho, e, após olharem um desses cardápios cafonas cheios de fotos, escolheram o sundae. Não puderam evitar a surpresa quando se depararam com um doce que fazia, de fato, justiça à imagem do cardápio. Quiçá era maior do que a representação no cartão plastificado sobre o balcão.
Agora deixavam a sorveteria após pagarem a conta com seus sorvetes desproporcionados enquanto riam.
Lúcio ficou satisfeito, seu amigo Afonso andava meio cabisbaixo, mais introspectivo e ensimesmado do que o habitual. Ele percebera que algo estava errado quando Afonso se abstivera de imitar vozes e entonações diferentes durante a última partida de RPG do grupo. Embora tivesse um sorriso no rosto, porém, Lúcio percebeu que Afonso ainda não estava bem quando ele encarou o sorvete por longos segundos e suspirou olhando pra cima antes de dar a primeira colherada na iguaria.
Sentaram em uma praça pouco mais de uma quadra de distância da sorveteria, e começaram a comer seus doces. Lúcio falou:
-Velho, eu recém almocei, não sei se dou conta desse sundae inteiro...
-Tá brincando? - Replicou Afonso. - Eu vou começar a comer agora, mas vou levar pra casa e comer sundae na sobremesa a semana inteira. - Exagerou.
Riram.
Continuaram comendo, em silêncio. O sorvete era muito bom. Lúcio, porém, não consegiu terminar o seu. Largou o copo ao lado do próprio pé com o conteúdo pouco abaixo da metade. Afonso continuava comendo. Mecanicamente, enquanto olhava pra frente. Lúcio perguntou:
-Tudo bem?
Afonso hesitou brevemente antes de responder:
-Sim. Eu vou terminar nem que gele até minha alma. Eu não vou largar o sundae de dois litros pela metade, agora, senão, amanhã eu tô comendo meia barra de cereais de sobremesa após comer batata ao vapor e frango grelhado no almoço.
Lúcio riu. Mas perguntou de novo.
-Tudo bem?
-Tudo. Eu aguento. - Respondeu Afonso dando mais uma colherada.
Lúcio repetiu:
-Tudo bem?
Afonso pousou a colher no copo do sorvete e encarou sério o amigo.
-Vai dar de Robin Willians pra cima de mim, gênio indomável?
Lúcio riu de novo, mas não falou nada. Encarou Afonso como quem aponta uma obviedade. Afonso suspirou:
-Não... Claro que não. Não tá tudo bem. Tá o oposto de tudo bem. O tudo bem tá aqui: - Ele disse erguendo a mão trinta centímetros acima da cabeça.
-E eu tô aqui. - Continuou baixando a mão rente ao chão entre os pés.
-É... Dá pra ver. Que merda... E o que tu vai fazer?
-O que que eu vou fazer... Eu vou fazer o que eu sempre faço nessas situações. Eu vou continuar tocando em frente, fazendo as minhas coisas. Vou me lamuriar feito uma velha, encher o saco dos meus amigos com a minha cara de bunda, evitar a estagnação apenas reagindo ao mundo, e tentar evitar canudinhos, pantufas, super-heróis, cinema, RPG, Star-Wars e tudo mais...
Lúcio encarou Afonso com uma expressão de incredulidade. Afonso suspirou:
-É... Eu sei...
-E não tem outro jeito?
-Não. Não tem. Não tem por que eu não sei ser diferente. Não tem por que eu sou a porra do produto do meu ambiente. Se eu fosse Frank Costello e meu ambiente fosse um produto de mim, talvez tivesse jeito, mas não é o caso. Eu sou quem eu sou. Eu sou quem eu posso ser. Não é muito, mas é o que dá. E isso não é o bastante. Eu sabia que não era, todos os meus instintos diziam que não era, mas eu ainda assim, ignorei tudo o que eu sei a respeito de tudo, e tentei um salto de fé...
-De fé? Tu?
-Te fode.
Os dois riram.
Lúcio suspirou enquanto Afonso mexia o sorvete já em estado mais pra líquido do que sólido dentro do copo. Tomou fôlego e abriu a boca:
-E se...
-Não. - Interrompeu Afonso. -Nós passamos da fase do "E se". Acho até que já tem mais gente na parada.
-Isso é linguagem da prisão? - Riu Lúcio.
Afonso riu, também. Olharam pra distância. O céu já estava escuro, apenas com rajadas de cor de laranja e rosa junto ao horizonte.
-Vamo indo? - Perguntou Afonso.
-Vamos. - Assentiu Lúcio, levantando-se e jogando o seu resto de sorvete na lixeira. Afonso se levantou e foi acompanhando o amigo carregando o que ainda restava de sorvete em seu copo consigo.
-Tu ainda vai comer esse troço derretido? - Perguntou Lúcio.
-Eu vou levar ele pra casa. Vou colocar no freezer em potência alta, deixar estar, e torcer pra que ele esteja apresentável amanhã, e quem sabe, eu, ou outra pessoa queira ele...
Lúcio sorriu colocando a mão no ombro do amigo:
-Que analogia mais gay.
-Vai te foder. - Replicou Afonso, rindo.

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