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terça-feira, 6 de outubro de 2015

Na Corda


Começo de manhã de domingo. Muito começo de manhã. Sete e meia da "madrugada".
A última aluna do curso de técnica vertical tinha seu equipamento de proteção individual sendo conferido pelo auxiliar número 1 do instrutor.
Os dois no alto da torre de treinamento dos bombeiros. Ele, calça de abrigo azul marinho, camiseta vermelha de zumbis, tênis. Capacete branco, luvas sem a ponta do indicador e do polegar. Entediado até a alma.
Ela, cabelos castanho-escuros encaracolados escapulindo pra fora do capacete cor-de-rosa, blusinha verde oliva, short estampado de preto e cinza, meias de aeróbica amontoadas sobre o tênis all-star vermelho. Lívida de pavor. Olhava só pro chão, e volta e meia secava as palmas das mãos no short.
A voz do instrutor surgiu pelo comunicador:
-Confere o epeí da Betina e coloca ela na corda.
-OK. - O auxiliar respondeu.
Entregou as luvas para ela e disse, ainda entediado:
-Não precisa te preocupar... Isso é totalmente seguro. Só te lembra sempre de encurtar a corda antes de começar a descer, e não largar a ponta saindo de baixo do freio, OK?
-Essa aqui? - Ela perguntou mostrando a ponta errada.
-Não... Essa tá entrando por cima... A ponta que sai por baixo... Peraí... -Ele apanhou a ponta correta, ela continuava segurando a outra. -Estica a corda. Não... Assim. Aqui, ó. Tá vendo? - Mostrou. -Essa parte, entra por cima... Essa aqui, sai por baixo. Entendeu?
-Arram. - Ela confirmou incerta, olhando para trás, vendo a imensidão da cidade.
-Então, essa aqui, tu não larga. Nunca. Não precisa agarrar com muita força, senão te dá cãibra na mão e tu não vai conseguir segurar. Só firma o suficiente pra corda correr devagarinho, não esquece que tu quer que ela deslize, senão tu não desce. Pronta? - Perguntou, percebendo que ela não absorvera nada do que ele havia dito.
-Tô... - Ela respondeu. Convicção abaixo de zero.
-Então vai lá. - Ele disse, sinalizando para que ela ganhasse a beirada da plataforma.
-Espera... - Ela disse, detendo-se antes de ameaçar dar um passo.
-Hã? Que foi? - Ele perguntou, erguendo uma sobrancelha, impaciente.
-E se me der cãibra na mão?
-O Diogo tá lá embaixo segurando a ponta da corda. Se tu não conseguir segurar, ele segura. Aí ele te desce, OK? - Ele explicou.
-Ãhn... - Ela não parecia certa. Olhava pra baixo. Ele não tinha certeza se ela tinha entendido o que ele acabara de dizer.
-OK? - Ele perguntou.
-Não sei... Olha, deixa outra pessoa ir antes... - Ela disse, afastando-se da beirada.
-Não tem mais ninguém. Tu ficou por último... - Ele explicou apontando o resto dos alunos do curso, aglomerados trinta e quatro metros abaixo.
-Hã... Ninguém quer ir de novo? - Ela perguntou, meio que acenando pra quem quer que estivesse olhando lá de baixo, ainda que não tivesse aumentado o tom de voz. Talvez por falta de ar para tanto.
-Sim, todo mundo quer ir de novo, porque isso é muito legal, mas eles só vão poder ir depois que tu for. - Ele explicou, didático e monocórdico como um documentário da TVE.
-Arram... Olha, eu não me importo de alguém ir outra vez antes... Não tem problema... - Ela reforçou, caminhando cada vez mais pra longe da ancoragem de saída.
-Não, não... Tu não entendeu. Só fica uma pessoa aqui de cada vez. Pra alguém subir, tu vai ter que descer. - Ele explicou, abrangendo com um gesto todo o topo da torre de treinamento, mais ou menos do tamanho de uma mesa de jantar.
-Eu desço pela escada... - Ela disse, apontando para trás dele.
-Pela escada? - Ele perguntou, erguendo as sobrancelhas, incrédulo.
-É. Não tem problema. Eu desço de escada... - Ela arriscou, casual.
-Tu te lembra da escada? - Ele quis saber, ainda com a expressão de quem não acredita.
-Sim. É logo aqui atrás... - Ela manteve, apontando para a escada vertical que descia pela lateral oposta da torre.
-É, mas subir é bem diferente de descer. Acredite em mim. Eu preciso recolher as cordas no final do curso e descer pela escada. É um lance que... Bom, enfim... Tu que sabe. Quer descer pela escada, desce pela escada. Tranquilo. Te desengata aí, e pode descer... - Ele disse como quem desiste, dando de ombros e fazendo sinal com a mão espalmada apontando para a escada.
-Obrigada... Hã... Tu me ajuda? - Ela pediu, meio sem graça.
-A desengatar?... Peraí... - Ele suspirou, desengatou o próprio equipamento das ancoragens de segurança e se dirigiu à ela, ajudando-a a se libertar das fitas e dos mosquetões.
-Obrigada... - Ela disse, meio constrangida, parada durinha enquanto ele removia o aparato de segurança dela.
-Tudo bem. Desce, respira, pensa bem. Quando tu te sentir confortável, sobe de novo que a gente te coloca no rapel. - Ele encorajou com um sorriso falso.
-Tá... - Ela assentiu, sem muita certeza.
Ele voltou para a beirada e se pôs a recolocar o aparato de volta nas ancoragens de segurança.
-Moço... - A voz dela o chamou. Ele se virou e a viu, apenas dois ou três degraus abaixo da saída da escada.
-Hein? - Perguntou.
-Eu... Eu acho que não consigo... - Ela assumiu, os olhos fechados e o rosto contorcido numa careta de medo.
-Não consegue o quê? - Ele perguntou já sabendo a resposta.
-Descer... - Ela confirmou as suspeitas dele.
-Pela escada? - Ele quis saber.
-É... - Ela confirmou novamente.
-Mas tu subiu... - Ele disse, lembrando-a de que ela havia subido por aquela escada, ainda que soubesse bem como era ruim descer a escada vertical.
-É, eu sei, mas é como tu disse... Subindo eu não tinha noção de altura... Agora só de olhar pra baixo me deu vertigem... - Ela explicou, envergonhada.
-Meu São Crispim... Tá... Olha só... hã... Betânia... - Ele começou.
-Betina. - Ela corrigiu.
-Isso, Betina. Olha só, Betina, tem duas formas de descer dessa torre... Pela corda ou pela escada. A terceira via seria um resgate aéreo, onde um piloto de helicóptero conseguiria parar alguns metros acima da torre e te tirar daqui, mas esse método envolveria tu ser içada, ora veja, por uma corda. - Ele disse, tentando ser divertido quando, na verdade, estava puto.
-É... Olha... Não tem outro método...? - Ela perguntou enquanto ele a ajudava a subir de volta pra plataforma.
-Tu poderia pular, mas apesar de ser mais rápido que os outros, eu não recomendo... - Ele disse, fazendo uma careta.
-Ai, meu Deus... Tá... Peraí, me engancha de novo... - Ela pediu ao se dar conta de que estava sem nenhuma espécie de apoio na plataforma.
-Tá... "engancho"... Vem aqui. - Bufou ele, agachando-se e recolocando o equipamento.
-Olha só... - Ele disse, pegando ela pelos ombros e direcionando o olhar dela para o que estava mostrando. -Eu estou encurtando a corda pra ti. O Diogo tá lá embaixo e ele tá te dando segurança, não tem como tu cair, entendeu? - Ele disse, pausadamente, olhando nos olhos dela.
-Arram... - Ela disse, sem olhar de volta, continuava olhando pra cidade à distância.
-Então tu só tem que segurar a corda, tá? Essa ponta de baixo. Só segura essa ponta e deixa ela correr devagar pela tua mão. Tu vai controlar a descida. Se tu achar que não deu, tu grita que não tá conseguindo, e o Diogo te segura, tá? - Perguntou.
-Tá... - Ela disse, gotículas de suor se acumulando sobre seu lábio superior.
-Pode ir. - Ele disse, gesticulando.
-Não consigo, tô congelada. - Ela disse, olhando pra baixo, estaqueada.
-Tá... Calma, faz assim... - Ele disse, erguendo-se com um suspiro e a pegando pela cintura fina. -Fica de costas pra beirada... Tu não é do Rainbow Six pra fazer rapel de frente... Eu vou contigo.
-Onde? - Ela perguntou assustada.
-Na corda. - Ele disse. -Não na mesma corda. - Explicou, clipando o próprio equipamento à uma corda adjacente. -Peraí. Pronto... Olha aqui. Olha o que eu tô fazendo. Tô segurando a corda. Agora faz que nem eu, vai deslizando devagarinho a corda pela palma da tua mão aqui atrás... Tá vendo? Deixa ela correr, aperta só o suficiente pra controlar a velocidade em que tu vai descer, tá? Ó, isso, é tu que tá descendo, tá vendo?
Ele percebeu que ela fazia a mesma coisa que ele, mas infinitamente mais devagar, hesitante, claudicante, apavorada.
-Tô... - Ele respondeu, olhos fixos no equipamento.
-Tu tá descendo,é tu que tá controlando, não é? - Ele perguntou, sorrindo.
-É. - Ela respondeu, ainda nervosíssima.
-É tu. Tu tá fazendo rapel. Agora vamos lá. Eu tô contigo. Vamos na tua velocidade. - Ele disse, acompanhando-a no passo de tartaruga.
-Tá... - Ela respondeu. Estava visivelmente apavorada.
-Relaxa, não precisa ficar tão tesa, olha só, curte a brisa... Apóia o pé ali na parede. Vai andando pra baixo... - Ele encorajou, percebendo que ela estava tão tensa que a qualquer momento começaria a ter cãibras.
-Tá... - Ela respondeu, obedecendo e apoiando os pés na parede.
-Não é bom? Fica mais leve, né? - Ele perguntou.
-...É... É bom... - Ela respondeu.
-Não senti firmeza, mas tranquilo. Vai descendo. Pensa no Homem-Aranha, no Indiana Jones... Quem mais? - Ele quis saber, tentando distraí-la.
-Batman e Robin... - Ela sugeriu, nervosa.
-É... Pode ser. Quem tu quer ser? - Ele perguntou.
-O Robin... - Ela respondeu.
-Sério? - Ele riu.
-Sim... - Sustentou, ela.
-Por quê? - Ele quis saber.
-Gosto de ficar de perna de fora, gosto de cores vivas, e tu é maior. Tu pode ser o Batman. - Ela explicou.
Ele não falou nada. Apenas ficou olhando pra ela, admirado. Suspirou um:
-Uau...
-Que foi? - Ela perguntou, ainda olhando para o próprio equipamento de proteção individual.
-Nada... Faz teu rapel aí. - Ele tergiversou.
-Que foi? - Ela insistiu.
-Teu mosquetão tá fechado, né? Presta atenção aí... - Ele recomendou, deixando a própria corda virar de modo a ficar de costas para a parede e poder ver a cidade.
-Sério... Que foi...? - Ela perguntou, suplicante.
Ele virou e viu que ela estava olhando pra ele:
-Mas ah, guria! Tu tá olhando pra outro lado! Muito bem. Olha em volta, são quase vinte metros de altura, olha ao redor, curte! - Recomendou, agora animado de maneira genuína.
Ela seguiu a recomendação dele, relaxou, respirou fundo, olhou em volta. Os colegas de curso, lá de baixo, a saudaram com gritos de apoio, e ela olhou de volta pra ele, e sorriu.
Terminaram a descida, o curso continuou. Ao final, já quando a tarde se esvaía na noite, e o instrutor principal havia feito seu discurso sobre como aquelas técnicas eram perigosas e deveriam ser levadas à sério e repetidas sempre para se manterem frescas na cabeça dos alunos, Betina se aproximou do auxiliar que terminava de guardar as bolsas com o equipamento na caminhonete do patrão:
-Brigada, viu...
Ele se virou e sorriu pra ela:
-Capaz. Eu é que agradeço.
Ela se aproximou, mãos seguras atrás das costas:
-Não... Sério. Eu nem queria vir, meus amigos meio que me arrastaram, mas acabou sendo tri bom.
Ele se endireitou, limpando as mãos na frente das calças:
-Eu fico feliz que tu tenha gostado. Desculpa se em algum momento eu fui grosseiro ou impaciente, mas teve uma hora em que eu achei que tu não ia descer, mesmo...
-Eu não ia... - Ela assumiu, fazendo cara de pavor. -Não ia mesmo. Tu não foi grosso. Um pouco impaciente, talvez, mas é compreensível. Além do mais... Tu desceu junto comigo... E isso foi muito legal.
Ele não disse nada. Continuou sorrindo pra ela.
Os colegas que a haviam arrastado pro curso apareceram, chamando-a, e ela ergueu a mão despedindo-se tímida.
Ele acenou de volta sem dizer nada e terminou seu serviço. O chefe ofereceu-lhe uma carona, mas ele resolveu ir embora a pé. Ao sair pelo portão, deparou-se com Betina, sentada na calçada em frente. Ele parou ao lado dela e com cara de quem não entende, a cumprimentou:
-Oi...
Ela se levantou rápido. A palidez da manhã substituída por um vermelhão típico de quem está morrendo de vergonha do que está prestes a fazer. Vomitou a frase como se não existisse pontuação ou necessidade de respirar:
-Oi... Então... Eu, eu tava com fome, e resolvi comer no McDonald's aqui do outro lado da rua, e não tava a fim de comer sozinha, será que tu não tá... Com fome?
Ele acenou positivamente. Os dois atravessaram a rua e comeram juntos na lanchonete. Saíram de lá quase onze e meia.
Durante o jantar, entre batatas fritas, sachês de ketchup e copões generosos de Fanta e guaraná, ele tocou na mão dela pela primeira vez.
Quase à meia-noite, quando ele a deixou em frente ao prédio onde ela morava, ela e ele se beijaram pela primeira vez.
Os encontros e os beijos se repetiriam na terça, na quarta, e na sexta-feira seguintes.
Viraram namorados. Depois, passaram a morar juntos, e após alguns anos, eram marido e mulher, para em seguida serem pai e mãe da própria família.
Tudo, porque ela encontrou um homem em quem podia confiar, e ele, uma mulher abnegada o suficiente para, sem pestanejar, deixá-lo ser o Batman.
Não há alicerce melhor do que este para uma relação.

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