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terça-feira, 3 de novembro de 2015

A Própria Medida


Acordou de madrugada, quatro e dezoito da manhã, despertado por uma dor lancinante. Violenta. Como uma ferroada no cérebro, que explodiu de um pré molar inferior e se espalhou pelo rosto até fazer pulsar a veia da têmpora no lado direito da sua cabeça.
Nunca tinha acordado de dor antes. Chegou a se assustar num primeiro momento, ao despertar sobressaltado com aquela onda de dor tão intensa a acossá-lo.
Acalmou-se, respirou fundo, sentou na cama onde dormia nu, vestiu um calção, e saiu do quarto.
Estava na praia, era um sábado no meio de um feriadão. Só poderia consultar um dentista na terça, e isso na melhor das hipóteses, na mais realista, apenas na quarta. Foi até a copa e remexeu o armário de remédios sobre a geladeira. Encontrou um par de analgésicos e um anti-inflamatório. Já havia sido bem sucedido no combate à dor de dente com anti-inflamatórios. Tomou um, sem certeza de quê ajudaria. Não se lembrava de ter experimentado uma dor tão intensa na vida.
Ao menos, não física.
Já havia sentido muitas dores. Muitas dores, mesmo. Já quebrara ossos, tivera ruptura de tendões, inflamações, e toda a sorte de lesões que um atleta de fim de semana desajeitado e fora de forma poderia ter. Isso o ensinara a ter um limiar de dor que sua dentista dissera ser "extremamente alto". Ele confessaria sentir algum orgulho disso.
De ser resistente a dor.
Orgulhava-se de ignorar solenemente os avisos de profissionais de saúde em geral quando diziam "Isso vai doer um pouco". Jamais experimentara uma dor insuportável.
Isso era, de certa forma, reflexo de sua criação.
Seu pai era um dos homens mais fiasquentos que ele conhecera em sua vida. Transformava qualquer desconforto físico em Via-Crúcis. Gemia, choramingava, se queixava... Certa feita, casualmente sofrendo de uma dor de dente em um domingo à noite, esperneou a madrugada inteira. Não é uma figura de linguagem. Ele, um homem crescido, literalmente esperneou na cama, chutando o colchão com os calcanhares enquanto gemia e rosnava com o travesseiro no rosto.
Quando fazia curativos, passava o tempo inteiro fazendo "Fss!", "Aaaah!" e "Hnnng!", sobressaltando-se e retesando-se. Precisava ter sempre analgésicos em casa, pois ao menor sinal de dor, tomava um par de comprimidos. E toda a vez que sentia alguma dor, qualquer dor, parecia que a primeira coisa a fazer era anunciar ao mundo que a estava sentindo.
Aquele comportamento fiasquento do pai o deixava extremamente desconfortável. Envergonhado, até. Parecia o extremo oposto do que um homem deveria fazer. Ao menos fora o que ele aprendera no cinema e na literatura. Talvez por isso ele tenha crescido achando tão importante não ser um sujeito suscetível à dor física.
Ainda na infância sua mãe aprendera a lê-lo, exatamente na curva oposta do pai. Ela suspeitava que ele estava com dor quando ele ficava quieto demais.
Para ele era importante ser capaz de engolir a dor, engolir o medo, engolir o choro, outra coisa que os homens de sua família não sabiam fazer. Um homem de verdade deveria ser forte, honesto, e, mais tarde ele aprenderia, bom de garfo.
Mas o mais importante, o primordial, era ser forte, e isso ia muito além de ter músculos volumosos e ser capaz de erguer grandes quantidades de peso. Ser forte era um estado de espírito que ele tentava cultivar. E que incluía ser forte o bastante pra não choramingar, ficar gemebundo ou escandaloso ao sentir dor.
Andou até a cozinha, abriu a porta dos fundos da casa da praia, ouvindo o som do mar, e sentindo o açoite do vento gélido que vinha do litoral. A dor ainda era violenta. Tomou um gole de água gelada direto do gargalo do garrafão de cinco litros, e fechou a porta. Andou até o quarto, entrou, fechou a porta, despiu-se novamente, deitou-se e cobriu-se.
A dor piorou quando colocou-se na horizontal. Rilhou os dentes, fechou os olhos e virou pro lado.
Antes de pegar no sono, sorriu orgulhoso:
Não fizera muitas coisas certas na vida. Mas era um homem de verdade, ao menos para a própria medida.

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