Pesquisar este blog

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Guarida


A Kátia, trinta e poucos, bonita, descolada, já estava usando um pijama de pinguins e deitada no sofá-cama que dominava o seu apartamento tipo JK. Desligou a TV, e perguntou pro Ventola, trinta e poucos, aparência mediana, meio amarfanhado deitado no chão ao lado do sofá-cama da Kátia, se ele estava pronto pra dormir, desejou-lhe boa noite e apagou a luz.
-Vamos trepar... - Sugeriu, casual, o Ventola, deitado meio atirado em cima de uma almofada junto ao sofá da Kátia em meio ao breu.
A Kátia, sem sequer se mexer, respondeu:
-Vai te foder, Ventola.
O Ventola assentiu:
-Isso. Me foder... Te foder... Nos fodermos um ao outro... Tipo bichos e tal... Yeah...
A Kátia nem se dignou a responder. O Ventola e ela se conheciam desde sempre. Eram parte da mesma turma de amigos desde antes da faculdade. Enquanto outros tantos haviam desgarrado do grupo original, a Kátia, o Sidney, o Heitor e o Ventola haviam permanecido. Eram tão constantes que pessoas que haviam feito parte do grupo em algum momento, quando queriam rever os amigos, iam até o bar na sexta-feira, pois sabiam que encontrariam os quatro lá.
O Ventola, beberrão mór do grupo, frequentemente dormia na casa de alguém depois das noites de sexta-feira no bar. Durante a semana o Ventola era quase abstêmio, mas na sexta-feira, meu amigo, sai de baixo. Bebia até gasolina se a apresentação estivesse razoável.
Quando ficava bêbado demais pra chegar à própria casa, o que era quase regra, ele capotava no sofá de alguém. Normalmente era na casa do Sidney, mas o Sidney conseguira arrastar uma guria do bar pra casa, então não podia ter um bêbado atirado no sofá. O Heitor tava de mal com o Ventola por causa de uma discussão de cunho político partidário, de modo que sobrou pra Kátia dar guarida pro bebum naquela madrugada.
A Kátia, apesar de morar no menor apartamento, não se importava de ter o Ventola dormindo no chão da sala por uma noite, o problema é que ele não estava dormindo.
Estava acordado.
E falando.
-Kátcha... - Ele começou, com a voz enrolando em meio à escuridão do ambiente. -Vamos trepar... É sério. Tô te convidando...
-"Convidando"... - Repetiu a Kátia, como quem não acredita.
-Tô mesmo... Papo de amigo, Katcha... - Confirmou Ventola, sério.
A Kátia acendeu a luz e olhou pra ele com os olhos semicerrados:
-Se tu estivesse na casa do Sidney ou do Heitor, convidaria um deles pra trepar?
-Não, né, Katcha? Eu não sou gay... E nem eles... - Respondeu Ventola, fazendo cara que quem está sendo forçado a dizer uma obviedade.
-Vai dormir, Ventola... - Sugeriu a Kátia, apagando a luz novamente.
O Ventola deitou em cima da almofada meio a contragosto. Virou pro lado e ficou quieto.
Por quase trinta segundos.
-Katcha...
A Kátia não respondeu.
-Katcha...?
A Kátia seguiu sem responder.
-Ô, Katcha...
-Quié, Ventola? - Respondeu Kátia, fechando os olhos para ver se encontrava algum pingo de paciência dentro do próprio crânio.
-Eu sou repelente? - Perguntou, ele.
-Cala a boca, Ventola... - Respondeu a Kátia, num suspiro.
-Sério - Sustentou ele. -Eu quero saber... Porque eu devo ser... É a única razão pra eu continuar sozinho à essa altura da vida...
-Então tu tá sugerindo que eu sou repelente? - Perguntou a Kátia, sem abrir os olhos ou mexer a cabeça do travesseiro.
-Não, né, Katcha... Tu é gatona, esperta... Tá sozinha por opção... Eu... Eu sou esse traste bêbado e amarfanhado que capota na casa dos amigos no final de semana. Um infeliz sem serventia que só incomoda... - Choramingou ele.
-Pelo amor de Deus, Ventola... - Suspirou Kátia.
-Tá... Desculpa. - O Ventola disse, silenciando.
O silêncio durou alguns minutos. Até a consciência da Kátia pesar.
-Ventola... Tá acordado? - A Kátia sussurrou acendendo a luz.
-Tô. - Ele respondeu.
-Tu não é repelente, tá? Sóbrio, de banho tomado, tu é um amorzinho, quando a gente se viu a primeira vez, eu te achei gato, e depois que eu te conheci, te achei uma pessoa sensacional. Generoso, divertido, confiável... E se a gente não fosse amigo há tanto tempo, se não partilhasse um background tão extenso, se não fôssemos, cada um, um pilar do grupo, eu te pegava certo. Mas bêbado, rançoso e meu amigo de longa data, não tem como. - Sorriu, inclinou-se pra frente, passou a mão no rosto do Ventola e deu-lhe um beijo na bochecha.
Se endireitou na cama, e voltou a apagar a luz.
Quando estava prestes a pegar no sono, o Ventola falou:
-A gente não é assim tão próximo. Acho que a gente podia trepar sem prejuízo definitivo pro grupo...
A Kátia nem precisou acender a luz pra acertar o controle remoto da TV na cabeça do Ventola enquanto firmava propósito de, na próxima vez, sugerir ao pessoal que o Ventola dormisse no bar..

Nenhum comentário:

Postar um comentário