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segunda-feira, 19 de junho de 2017

Eu Gosto do Frio


Eu gosto de inverno.
Sempre gostei.
Gosto de casacão. De cachecol. De sentir o ar frio no corpo ao levantar de manhã e sair debaixo das cobertas, de sentir o relaxamento da água quente do chuveiro na hora do banho.
Do gelado do chão do banheiro nas solas dos pés ao ter que levantar de madrugada pra ir ao banheiro, e daquela corrida ligeira de volta pra cama, correndo pra se cobrir e enfiar as mãos entre as coxas porque ela gelaram depois de serem lavadas.
Gosto do efeito que a água fria faz quando lavamos o rosto numa manhã de inverno. E gosto de sentar no sol numa tarde gélida pra almoçar numa praça ao invés de no escritório.
Sempre preferi o frio ao calor.
Talvez porque o calor não tem cura, e o frio tem.
O frio se resolve fechando as janelas, colocando mais uma peça de roupa, ou se cobrindo com uma manta, o calor, não.
O calor é universal, perene, e tu pode estar na frente do ventilador com a bunda numa bacia de gelo e ainda assim, sentirá calor.
Calor é muito bom na praia.
Mais especificamente na beira da praia, de preferência com os pés na água do mar.
Muita gente adora verão. Vibra quando os termômetros marcam 40 graus. Se deliciam ante a perspectiva de mais um dia escaldante com sol a pino.
A própria previsão do tempo corrobora isso.
Sempre falam de calor e sol como "tempo bom".
Eu pergunto:
"Bom pra quem?"
Porque não gosto de calor. Não gosto de estar sempre suando, procurando a linha de ação do ar-condicionado até minhas narinas secarem e sangrarem, ou ter o ventilador virado, literalmente, pra minha cara enquanto me espalho pela cama tentando fazer com que nenhuma parte do corpo toque na outra para evitar a sensação pegajosa de uma pele constantemente suada.
Não gosto.
Mas respeito quem gosta.
Façam sua festa quando estiver 40 graus e tu puder sentar numa cadeira de praia à beira mar. Eu mesmo tento fazê-lo na medida do possível, ainda que, pra mim, isso não seja aproveitar o calor, mas sim lidar com ele.
Curtam o calor enquanto eu espero pelo inverno, minha estação favorita do ano, que anda sistematicamente mais curta e menos intensa à cada volta que a terra dá ao redor do sol...
Mas aparentemente curtir o calorão não basta pra quem ama verão, sol e calor.
Essas pessoas não apenas adoram a quentura. Elas têm ojeriza ao frio.
Elas resmungam, tiritam e praguejam cada vez que o termômetro ousa ir abaixo dos dezessete graus.
Tudo bem.
Eu reclamo do calor o tempo todo.
Sei como é não gostar da temperatura.
Conforto térmico é um negócio extremamente pessoal, afinal de contas. Se duvida, pergunte qual a temperatura ideal a um esquimó e a um árabe...
Mas os amantes do calor vão além.
Eles não se satisfazem apenas odiando o frio e resmungando enquanto colocam mais um par de meias, aumentam a temperatura do ar-condicionado e aquecem uma bolsa de água para colocar nos pés durante a madrugada.
Eles tentam fazer quem gosta do frio se sentir culpado.
"Como é que tu podes gostar de frio? Não sabia que muita gente sofre nesse clima?", perguntam. "Os hospitais se enchem de crianças e idosos com problemas respiratórios! Centenas morrem por causa do frio!", declaram. "Pra ti é fácil gostar desse frio, tu não é um desabrigado dormindo com um saco plástico como cobertor nos rigores do inverno!", acusam.
E eu, que sou um misantropo de carteirinha carimbada, mas não um psicopata, de fato, comecei a me sentir culpado por gostar de frio.
Toda a vez que a temperatura baixa e eu sinto aquele estupor leve nas mãos enquanto lavo um prato que sempre me agradou, sou tomado de piedade por pessoas desabrigadas, animais que vivem na rua, idosos e crianças com problemas respiratórios.
E me sinto culpado por gostar do frio.
Ainda ontem, conforme a temperatura caía vertiginosamente com a chuva no meio da tarde, e eu me aconchegava pra assistir um blu-ray com uma coberta sobre as pernas enquanto comia uma barra de chocolate Talento, me flagrei sendo assaltado pelo pensamento nos sem-teto e animais abandonados que passariam por agruras quando a noite chegasse e estivesse tudo molhado e gélido
E me senti culpado por meu modesto conforto.
Mas então um outro pensamento cruzou minha mente...
Será que algum desses cagalhões que se enchem de blusas, mantas, casacos e ceroulas a cada inverno realmente se importam com as necessidades de outrem, ou estão apenas advogando em causa própria invocando as agruras alheias?
E eu cheguei à conclusão de que é o segundo caso.
Ou tu já testemunhou algum desses amantes do calorão, ao ouvir alguém dizer que adorava churrasco na praia, se empolar que nem um pombo e arrulhar "Como é que tu podes gostar de comida quando há milhões de famintos no mundo?"?
Eu acho que não.
Ou ao serem convidados pra um chope depois do expediente declarar que "É até irresponsável tu querer tomar chope depois do trabalho. Tu não sabe quantas pessoas morrem em acidentes de trânsito causados por motoristas bêbados nas nossas estradas, sem contar a incidência de doenças hepáticas que o álcool pode causar?".
Também, não, né?
Já viu algum deles negar uma tarde na piscina no verão porque há milhões de pessoas sem acesso a água potável e tu querer mergulhar num tanque de água tratada é até um insulto às necessidades dessas pessoas?
É...
Nem eu.
Os "anti-inverno" estão lá, com as mãos escondidas nas axilas e cara de bunda, preocupadas apenas com o próprio frio, e não com o dos desabrigados. A larga maioria, por sinal, jamais mexeu um músculo pra ajudar algum desabrigado na vida, e só lembra deles pra justificar a própria frescura.
É por isso que eu me vejo no direito de dizer, com todas as letras, em alto e bom som que sim: Eu gosto de inverno.
Eu gosto de frio.
Eu gosto de roupas pesadas, de caldo de feijão, de meias de lã, de edredom e de levar tempo pra começar a suar na academia.
Eu me apiedo das pessoas que passam necessidades não apenas no inverno, mas em todas as estações do ano, e as míseras contribuições de quê posso dispôr para amainar o sofrimento de crianças e idosos esquecidos pelo Estado, eu faço no calor ou no frio, e não vou me desculpar pelo meu gosto pessoal.
As pessoas arrotam falácia politicamente correta quando ela vai ao encontro de seus interesses pessoais.
Não é apenas hipócrita. É pusilânime.
E pra quem faz tal uso do sofrimento alheio, minha sincera sugestão é que, se está com frio, vá carpir um lote que passa.

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