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quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Careta


Leovegildo entrou na academia como fazia todos os dias naquele mesmo horário. Cumprimentou Ivana, a morena bonita da recepção, Azevedo, o instrutor solícito que tratava todos os alunos por "capitão" ou "professor", e todas as alunas por "coração", dirigiu-se ao vestiário e trocou sua calça por uma bermuda. O resto da roupa, tênis, camiseta e meias, eram os mesmos que usara no trabalho até minutos antes. Protegeu os pulsos com munhequeiras, e dirigiu-se ao segundo andar da academia onde realizava a imensa maioria, senão a totalidade, de sua modesta rotina de treino. Ao estacar diante do primeiro aparelho do dia, um estalo mental.
Fazia noventa dias desde a última mudança na sua carga de treino. E já estava há um mês realizando dez repetições com a carga.
Era o momento de aumentar, sensivelmente, a quantidade de peso de seus exercícios.
Ele começara a fazer supino alguns anos antes com dezesseis quilos. Hoje, fazia com setenta. E era o momento de aumentar em, ao menos, quatro quilos aquela carga, então, pôs-se a catar anilhas que fossem todas iguais entre si, uma tarefa que demandava tempo em uma academia que lembrava o ginásio Mighty Mickey's de Rocky: Um Lutador, mas após cerca de cinco minutos peregrinando pelo andar superior, conseguiu encontrar as grandes bolachas de ferro que, não apenas tivessem o mesmo peso declarado, mas que fossem iguais, absolutamente iguais, entre si. Era uma neurose da qual ele não era capaz de se livrar. Leovegildo não se considerava um orgulhoso portador de TOC, como algumas pessoas faziam entre risos na internet, mas aquela pequena extravagância ele não conseguia deixar de lado.
As anilhas precisavam ser todas iguais.
Enfim, ele aplicou os pesos no aparelho de supino, deitou-se na tábua devidamente forrada com sua toalha, e pôs-se a realizar as quatro séries de oito repetições sentindo, com algum prazer, a dificuldade da nova carga.
Enquanto fazia o segundo exercício da rotina, terminando o último levantamento com alguma dificuldade e rilhando os dentes enquanto deixava escapar um grunhido baixo, anteviu que, na manhã seguinte, provavelmente sentiria dores musculares.
A perspectiva não era totalmente desagradável.
A verdade é que Leovegildo gostava daquela dor específica. A que os músculos extenuados causavam. Lembrava-se de uma vez, após uma travessia de cânion, acordar na segunda-feira incapaz de sentar na cama por conta das dores abdominais... E lembrava-se de ter rido enquanto tombava de costas de volta pra cama. Era, talvez, a certeza do dever cumprido... Leovegildo achava que exercícios que não causavam algum tipo de desconforto durante ou após a sua execução não eram exercícios bem-feitos.
Após concluir as três séries de exercícios para os peitorais, e as duas séries de exercícios para os ombros, era hora do carro chefe: Os exercícios para os braços.
Leovegildo entrara para a academia em um momento em que pesava quase cento e trinta quilos. Em três anos, emagrecera dezessete quilos fora a banha que trocara por massa muscular, que, se não chegava a ser um prodígio, era alguma coisa, mas além de deixar de ser um saco de banha suado, Leovegildo começara a se exercitar por ciúmes.
A moça por quem Leovegildo era apaixonado era uma admiradora de braços masculinos. Certa feita, ela tecera comentários elogiosos a respeito dos brações de Channing Tatum, o que fizera com que: A) Leovegildo passasse a detestar Channing Tatum, e B) Leo quisesse ter algum tipo de músculos, quaisquer músculos, em seus braços de linguiça.
Os resultados eram lentos e longe dos mais encorajadores, mas Leovegildo não era de desistir, além de ter uma capacidade quase sobre-humana de transformar tudo em hábito, de modo que ele perseverava dia após dia na esperança de, em algum momento, ter uns brações para mostrar para a sua amada quando se encontrassem.
Vinha fazendo seus exercícios de bíceps com halteres de quatorze quilos. Não era muito, mas ele recordava da vergonha que sentia no começo, quando realizava suas séries com miseráveis pesinhos de vovó de quatro quilos cada. Como era dia de aumentar os pesos, e não havia, na academia, halteres de quinze quilos, foi forçado a apanhar grandes peças de dezesseis quilos cada. Já ao remover os aparelhos do suporte sentiu a diferença do salto de tamanho. "Tudo bem", pensou. Havia sido a mesma coisa quando saltara dos pesos de dez para os de doze, e dos de doze para os de quatorze, de modo que seriam alguns dias de desconforto até a coisa virar hábito.
Sem grandes dramas.
Posicionou-se em frente ao espelho, afastou as pernas, flexionou levemente os joelhos, e começou a levantar os halteres enquanto fazia uma contagem mental das repetições. Deveriam ser quatro séries de oito levantamentos, e, por Deus, já no quinto Leovegildo bufava sentindo o suor verter-lhe da testa ensopando as sobrancelhas e escorrendo pela ponta do nariz.
Não era nenhuma tortura, na verdade, a liberação de endorfina era quase imediata, e aquele tipo de esforço era sempre aprazível para ele. Olhou para o espelho para garantir que a sua postura estava correta, e que não estava usando em demasia partes do corpo que não fossem os músculos-alvo do exercício parra fazer o levantamento quando olhou, casualmente, para a própria cara.
Percebeu que fazia uma careta de esforço que era algo entre o aterrador e o hilário. Sua boca estava contorcida, seus lábios retraídos por cima dos dentes, o nariz franzido, os olhos semi-cerrados e as sobrancelhas em posição de tristeza enquanto todos os tendões de seu pescoço estavam contraídos.
Num primeiro momento Leovegildo achou graça, chegou a rir enquanto largava os halteres num banco próximo antes de dar início à segunda série de repetições. E foi aí que um pensamento aterrador o assaltou:
Seria aquela a sua cara de sexo?
Porque Leovegildo sabia que havia uma relação entre caras de esforço e caras de sexo, já que ambas as atividades demandavam empenho físico e que ao fazer grandes azáfamas não era incomum que o rosto simplesmente se contorcesse em uma careta de, bem, esforço...
Ficou imaginando se essa era a cara que ela via durante os momentos íntimos dos dois, uma careta distorcida, quase cômica, enquanto ele a via tão linda quanto em qualquer outro momento do dia, ora com os olhos semi-cerrados e os lábios entreabertos suspirando, ora com uma expressão tênue de angústia como quem não pode esperar mais, ora, sorrindo abertamente o sorriso mais lindo e doce do mundo...
Imaginou que era bem possível que fosse aquele o caso, já que ilustraria perfeitamente a relação dos dois. Ela linda, terna, cheirosa e centrada com serenidade de samurai, ele feio, bagunçado, suando feito uma puta na igreja e desgrenhado como um criacionista da Terra jovem. A única dúvida que ficava era: O que ela havia visto nele?
Fosse o que fosse, era melhor não pensar demais a respeito, concluiu Leovegildo. A vida oferecia poucas dádivas, e uma tão preciosa quanto ela, era melhor não tentar racionalizar demais.
Apanhou os halteres e começou a segunda série. Dessa vez tentando manter a cara tão reta quanto possível.

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