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sexta-feira, 4 de junho de 2010

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Quando eu nasci, o pai de meu pai, um homem austero e até bruto, já havia morrido. Eu jamais o conheci, exceto pelos relatos de meu pai e meus tios que, confesso, não me deixaram com a impressão de ter perdido muita coisa.
O pai de minha mãe, eu também não cheguei a conhecer, mas por outras razões.
Ele era a ovelha negra de uma família do interior do Rio Grande do Sul, o que, à época, provavelmente convencionava-se caracterizar como um pândego. Um homem com gosto pela bebida, mulheres erradas, e que não era talhado para a vida em família, o que causou a separação dele e de minha avó. Ou, pelo menos, é a versão que me foi contada. Jamais o conheci, então, se ele tem uma versão diferente para os fatos, eu mantenho aberta a porta para eventualmente ouví-la, embora deva admitir que, após mais de 28 anos exposto á uma versão, fico inclinado a aceitá-la.
Enfim, como eu dizia, não conheci meus avós homens. Conheci um bisavô, o seu Costa, que era muito velhinho à época, conversava pouco, e, mesmo que falasse muito, eu era pequeno demais para discorrer acerca de qualquer tema com ele, exceto, sei lá, carrinhos e chupetas.
Minha avó materna, após se separar de meu avô, se casou novamente. Ela casou com Henrique, um homem de biografia tão vasta e diversificada quanto um secos e molhados do interior.
De imediato, lembro que ele foi marinheiro em São Paulo, lutou na Guerra da Coréia, foi boxeador na Argentina, agente da guarda-costeira, policial federal... Um sem-número de profissões, que ele abraçou e abandonou ao longo da vida.
Quando o conheci, de fato, lá com meus seis, sete anos de idade (Ele me conheceu bem antes, com dois dias de vida. Mas eu não me lembro.), lembro de achá-lo um sujeito durão, algo rude de vez em quando, mas era divertido. Tinha uma constituição sólida, era daqueles sujeitos que, quando tu olha, percebe que ele pode ser perigoso em uma briga independente da idade. Mas era uma cara que ele usava apenas externamente. Em casa era um sujeito bonachão, piadista, ás vezes até bobo.
Me lembro de sua enigmática pasta executiva, onde ele tinha os papéis de seu trabalho e um par de revólveres nos quais eu era proibido de tocar, exceto na presença dele e quando estavam descarregados. Me lembro de assistir filmes de Charles Bronson e Clint Eastwood e Silvester Stallone com ele. De acompanhar as Olimpíadas e corridas de Formula 1, ele sentado em sua poltrona, eu no chão, bem na frente da TV.
Henrique e minha avó não tiveram filhos, ele não tinha família, exceto por um irmão nos EUA, e uma irmã na Espanha. Minha mãe e minha tia não o chamavam de pai, o chamavam pelo primeiro nome, Henrique, e eu cresci acostumado a chamá-lo assim, também. Ás vezes, eu o encontrava no Centro de Porto Alegre, onde ele seguia trabalhando aos setenta e tantos anos. Quando o via, geralmente ele estava conversando com amigos, e me cumprimentava apertando muito a minha mão, e fazendo movimentos de queda-de-braço, então dizia que um dia eu teria que ganhar dele, e me apresentava aos amigos como seu neto.
Henrique jamais foi homem de ficar doente. Era um sujeito durão, como eu já disse. Mas a idade chegou. E, cerca de dois anos atrás ele foi acometido por um violento câncer no intestino. Só descobriu a doença em estágio avançado, o que dificultou o tratamento.
Passou por um par de cirurgias às quais os médicos não tinham certeza se sobreviveria. Sobreviveu. Poucos dias depois, estava subindo as escadas do prédio onde vivia. Mas nem tudo foram rosas.
As cirurgias, procedimentos invasivos e traumáticos, fizeram mal a ele. Ele começou a sofrer lapsos de memória, tonturas, ainda sofria com o câncer, que não fora totalmente eliminado e requeria cuidados.
A vida dele se tornou episódica. Ás vezes ele lembrava das coisas, ás vezes não.
Poucas semanas atrás, ele havia esquecido quem eram a minha tia e a minha avó, a quem se referia como "aquela enfermeira camarada".
Mas quando eu o visitava, ele sempre se lembrava de mim.
Pelo nome.
Dizia sempre que me conheceu quando eu tinha apenas dois dias de idade, e que me carregara no colo, e era capaz de lembrar que fora eu a instalar a antena da Televisão à que assistia atentamente na sala oito anos antes.
Na quarta-feira, durante a manhã gelada. Ele estava andando com a minha avó na rua. E sofreu uma tontura. Minha avó me chamou, pedindo que eu o ajudasse a levantar e tomar um táxi de volta para casa. Quando cheguei, ele estava sentado na calçada, parecia confuso. Dizia que se levantaria em um minuto.
Então me olhou e me chamou pelo nome.
Ele não se levantou. A despeito dos serviços da Brigada militar e dos esforços do SAMU, Henrique morreu na Avenida Borges de Medeiros ás dez para as onze da manhã da quarta-feira, dois de junho de 2010, 87 anos após nascer.
Durante seu funeral, na noite do mesmo dia, me lembrei do sujeito durão que me ensinou a amarrar os sapatos e cortar a carne com faca.
E só então percebi, que havia perdido meu avô.

Um comentário:

  1. Lamento, Capitão, pelo seu Henrique, o teu avô. Pois as coisas são como lemos, não o que os papéis dizem.
    O que fica é a vida que dividiram!!!
    abraços.

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