Pesquisar este blog

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Achocolatado


Quando criança o Lélis adorava achocolatados em pó. Nescau, Toddynho, o Nesquik que na época se chamava apenas Quik... Ele gostava de todos. O preferido era Toddy, mas naquela época o Toddy era pouco solúvel, então o Lélis via-se normalmente tomando Nescau, que se diluia rapidamente no leite e que alardeava ser o mais vitaminado dos achocolatados em pó.
Lélis tinha as melhores lembranças de sua vida na infância misturadas a achocolatados em pó como o Nescau.
Ele vira grandes filmes, ótimos desenhos e lera gibis sensacionais sorvendo generosos copos ou canecas de Nescau. Ainda era pequeno o Lélis quando sua mãe, atarefada que era cuidando de sua irmã caçula o aconselhou a fazer, ele mesmo, o seu Nescau.
Foi uma combinação de emoções conflitantes que sentiu Lélis diante daquela ordem. Se por um lado "Tu já tá grandinho, Lélis, pode fazer o teu Nescau." implicava que Lélis já não gozava do mesmo prestígio infantil dentro de casa, o que era natural considerando que ele tinha uma irmã que era pouco mais que um bebê; Por outro declarava que Lélis não apenas já era considerado autônomo o suficiente pra fazer o seu próprio lanche na cozinha, como ainda teria possibilidade de fazê-lo à sua própria maneira.
Lélis não era diferente de nenhuma outra criança, e tinha lá suas preferências com relação a achocolatados. A maioria das crianças gosta que a proporção leite/achocolatado seja de um copo de leite para achocolatado pra cacete, então, quando Lélis recebeu a colher e o copo de leite e se viu diante da lata de Nescau, ele se preparou pra mandar às favas a receita recomendada no rótulo de duas colheres de sopa. Não foram duas, e nunca eram duas. quatro, cinco, várias.
E ele ficava tremendamente satisfeito de beber aquele leite que, de tão achocolatado, parecia um copo de noite e deixava um bigode de fazer José Sarney corar de inveja.
Mas apenas atolar o leite com chocolate não era o suficiente pra ganância infantil de um Lélis carente... Não... Era necessário mais. Era necessário um toque a mais de extravagância. E esse toque a mais era dado na forma de duas generosas colheres de açúcar.
Isso mesmo.
Açúcar no achocolatado.
Não é necessário dizer que, se o Lélis vivesse no universo Marvel teria virado alguma espécie de Homem-Formiga sem o charme de Hank Pym, felizmente não era o caso. Lélis não desenvolveu presas, nem membros extras, e nem antenas. Na verdade, a única coisa que Lélis desenvolveu, além de um pouco de sobrepeso, foi um apreço todo particular pelo lodo adocicado que se formava no fundo do copo de onde ele sorvia sofregamente o achocolatado. Aquela mistura de Nescau, açúcar e leite adoçava sua boca, língua e garganta e lhe enchia de calorias e satisfação e mandava pra longe aquela ponta de tristeza por ter subitamente deixado de ser a criança da casa, e era uma boa sensação saber que doses generosas de açúcar e chocolate em pó no leite amainavam a tristeza.
E foi lembrando-se disso que Lélis, com o coração particularmente dolorido numa das noites passadas, se levantou feito um zumbi do sofá e caminhou trôpego até a cozinha, onde encheu uma caneca com leite e derramou cinco colheres de Toddy, hoje muito mais solúvel do que era na sua infância, e duas colheres de açúcar.
Mexeu bem a mistura, e caminhou até a sala onde se sentou e sorveu a beberagem, quase uma calda, enquanto assistia Star Wars, The Clone Wars no Cartoon Network.
Ao terminar de beber o leite, ele inclinou a cabeça pra trás e deixou que o lodo de toddy e açúcar escorresse pela parede da caneca até a sua boca.
Depois de lavar a caneca e escovar os dentes, Lélis ficou em dúvida. Ele não sabia se os achocolatados de hoje em dia já não eram a mesma coisa que haviam sido nos anos oitenta e noventa, ou se, simplesmente algumas das dores da idade adulta são à prova de achocolatado.

Um comentário: