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sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Conjectura


A Janaína tinha cheiro de corpo feminino suado. Não era dessas mulheres perfumadas, depiladas, de pele alva, lisa e impecável.
Não.
Janaína era esguia além da conta. Magra de ter o peito ossudo, onde podia-se vislumbrar as costelas. Era morena, pois gostava de estar ao ar-livre, sob o sol, tendo sua pele tostada aos poucos conforme se aproximava janeiro, exposição ao sol que lhe cobria a tez de sardas e sinais.
Tinha mais pelos nos braços do que muitos homens de idade semelhante, e não era vaidosa a ponto de depilá-los ou descolori-los, deixava-os in-natura, como testemunho de seu temperamento explosivo e arredio.
Era, também, testemunho de um pouco de preguiça.
Já lhe bastava ter de depilar as axilas, já que era uma devotada fã de blusas regata, e as pernas, já que gostava da companhia de homens e sabia que eles não respondiam bem a pelos nas pernas femininas.
Janaína se vestia pensando apenas em funcionalidade, calças largas e leves, que não faziam maravilhas por seu quadril estreito, blusas soltas e sem mangas que lhe davam liberdade de movimento e frescor, sandálias macias que lhe arejavam os pés...
Não era vaidosa, Janaína.
O fosse, não cortaria o cabelo em estilo "joãozinho", curto como o de um moleque, nem encararia o mundo desmuniciada de um batom ou rímel.
Mas Janaína não fazia nada disso.
Janaína não pensava em comprar uma bolsa da Prada, mas sim uma mochila da Deuter, pois era mais importante para ela ter uma estrutura confortável às costas quando fosse caminhar no mato com 60 litros de material de camping pendendo-lhe nos ombros magros do que desfilar com uma bolsa da moda.
Para Janaína, bastava uma dessas sacolas ecológicas de tecido cru para andar na cidade fazendo as vezes de bolsa. Qualidade e tecnologia, ela queria em seu saco de dormir, em seu isolante térmico, em sua mochila de viagem... Era assim a Janaína, que não se considerava hippie, mas sabia que o era.
E por isso mesmo, foi tanto mais estranho que o Eliezer tenha se sentido tão atraído por ela logo à primeira vista dentro daquela loja de bolsas e mochilas esportivas no Centro da cidade.
O Eliezer não era um hippie em potencial. Não. Nunca foi chegado no estilo de vida livre. Não gostava nem mesmo de estar ao ar-livre. Quando ia acampar e lhe perguntavam do que precisava dizia "Minha casa".
Era cria da cidade, o Eliezer.
Um desses sujeitos de físico meia-boca, em constante luta contra a balança e a própria gula, que volta e meia conquistava vitórias épicas contra o próprio corpo mas logo relaxava e recuperava os quilos extras, Eliezer era a figura do sujeito da cidade.
Um filho do seu tempo, da frente do computador, do videogame, da TV a cabo e do smartphone.
Tinha a aparência mediana de quem não liga para a própria aparência escondendo o fato de que, se não se preocupasse com a própria aparência, estaria aquém do mediano.
A barba por fazer era regiamente aparada para dar-lhe um ar de quem não havia se barbeado. O cabelo despenteado era cuidadosamente produzido na frente do espelho, e o jeans velho era de grife, e custava mais caro por já vir velho da loja. Eram vaidades a que o Eliezer, um sujeito feio, precisava se sujeitar de modo a não sumir na multidão, e volta e meia funcionavam. O Eliezer, um sujeito feio, namorava com frequência, inclusive algumas meninas que não eram feias.
O Eliezer tinha um tipo muito específico de mulher ideal:
A inalcançável.
O Eliezer sempre queria estar com a menina de 1,75m, 54 Kgs, loira, olhos azuis, seios tamanho 46, pinta de miss e pés lindos, mas, por sorte, tinha um radar ajustável à própria aparência. Não era um lunático.
Tinha um papo relativamente interessante, fingia ser um bom ouvinte, era educado e expansivo, de modo que era capaz de se movimentar com algum êxito entre as representantes do sexo oposto. Jamais ficara com a loira idílica de suas idealizações, mas encontrara ao menos uma daquelas qualidades em várias das mulheres que fizeram parte de sua vida.
Uma ou outra media 1,75m, algumas pesavam 54 Kgs, algumas eram loiras, outras tinham pés lindos, ou olhos azuis, várias tinham seios tamanho 46, e pelo menos uma tinha pinta de miss.
Eliezer gostava de peles lisinhas e perfumadas, tinha, inclusive suas preferências com relação ao tipo de perfume que queria sentir no pescoço de uma mulher, de modo que, a primeira coisa que o chamou a atenção quando parou a cerca de dois passos da Janaína dentro da loja onde ambos esperavam atendimento, foi justamente o cheiro dela.
Aquele cheiro de corpo suado. Mas não era ruim. Era um cheiro algo cru... Mas não tinha nada de ruim.
Ao olhar para Janaína, o Eliezer, tendo-a de frente, fitou-lhe o peito em busca dos seios, mas os seios dela eram quase nulos de tão pequenos. Ao invés de seios ele vislumbrou os ossos do peito de Janaína sob a sua pele bronzeada e, ao contrário do que supunha, isso não o repeliu. Pelo contrário. Ele achou bonito o corpo magro de Janaína sob sua blusa preta sem mangas. Notou que sob a blusa, ela não usava um sutiã, mas sim a parte de cima de um biquíni. Em plena Porto Alegre. Em pleno outubro... Não conseguiu evitar imaginar se sob a calça cargo larga ela usava calcinhas ou a parte de baixo do biquíni? Ou talvez uma cuequinha feminina? Não... Aquela mulher não parecia o tipo que ia à uma loja de lingerie descolada comprar uma cueca feminina. Ela parecia mais capaz de andar por aí com uma lingerie da vovó ou sem lingerie alguma.
Esse pensamente excitou Eliezer, que àquela altura já olhava para Janaína com outros olhos.
Seu rosto bonito e lavado, parecia mais atraente e enigmático do que o de qualquer cocota pós-púbere rebocada de blush e batom que ele secara em danceterias, seu cabelo preto cortado curto parecia mais macio e brilhante do que as madeixas loiras de qualquer modelo de comercial de cerveja, e suas mãos pequenas de unhas curtas pintadas de maneira apressada de um vermelho cereja na ponta de seus braços finos e repletos de finos pelos negros pareciam mais tentadoras do que as de qualquer massagista de clínica masculina.
"O quê é isso?", pensou. "O quê é que eu estou fazendo?", perguntou-se. Ela não era, nem de longe, o tipo de mulher que Eliezer vislumbrava em seus sonhos quando pensava na mulher ideal, e ainda assim, aquela magricela com "bicho-grilo" escrito em cada parte do corpo, subitamente parecia a mãe que ele sempre quis para os seus filhos.
Percebeu que não tirava os olhos dela, e, viu que ela o olhava de volta. Sorriu meio sem graça pela gafe, e, para sua surpresa, Janaína sorriu de volta.
Tinha um sorriso lindo. Branco de dentes quadrados que lhe iluminava o rosto deixando-a mais bonita do que qualquer maquiagem poderia sonhar em fazer.
Eliezer estava aturdido pela revelação súbita de seu interesse por uma mulher tão diferente de tudo o que ele considerava importante na aparência de uma mulher, pensou em dizer alguma coisa, mas as palavras lhe faltaram. Sempre tinha alguma frase feita na ponta da língua pra qualquer mulher que lhe cruzasse o caminho, mas viu-se mudo diante de Janaína, que logo foi aliciada por um vendedor enquanto um segundo levava Eliezer para outro canto da loja à medida em que Janaína e ele procuravam por coisas absolutamente diferentes. Ela, por grandes mochilas de viagem, ele, por uma mochila média para usar no dia-a-dia.
Eliezer escolheu o mais rápido que pôde, mas ainda assim demorou, pois muitas eram as opções que o vendedor tinha para oferecer. Quando se dirigiu ao caixa, ainda pôde vislumbrar Janaína saindo pela porta com uma grade mochila vermelha e cinza nas costas. Não era o tipo de mulher que carregava as compras em sacolas plásticas.
Após pagar a conta e sair com sua mochila nova, Eliezer olhou para os dois lados tentando enxergar Janaína ao longe.
Voltou para perguntar se o operador de caixa tinha o nome da moça que saíra logo antes. Mas ela pagara em dinheiro vivo e não quis nota fiscal.
Eliezer sorriu "típico dela", pensou, ainda que não soubesse nada dela, exceto o que pudera deduzir ao vê-la, parada de pé na loja.
Supôs, corretamente, que ela era uma amante de atividades ao ar-livre. Que deveria beber e eventualmente até usar drogas ilícitas de maneira recreativa. Que devia ser de acordar cedo. De dormir fora de hora quando a a oportunidade se oferecesse. Que provavelmente fosse vegetariana, e que ainda fosse amiga de ex-namorados que eram completos idiotas.
E concluiu que, entre uma mulher como ela, e um homem como ele, as coisas jamais dariam certo.
Mas não pôde deixar de conjecturar, ainda que brevemente, que perdera o amor de sua vida.

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