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quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Pontos de Vista


O Fabiano estava distraído diante do freezer dos sorvetes no corredor dos congelados do super-mercado. Não conseguia se decidir se estava em dúvida sobre qual sorvete escolher, entre um sabor novo de floresta negra e o sorbet de limão que comprava sempre, ou se estava apenas aproveitando o ar glacial que saia de dentro do aparelho naquela tarde escaldante de primavera quando os termômetros marcavam mais de 35 graus centígrados na rua, e as calçadas poderiam ser usadas como frigideira.
Resolveu que precisava fechar a porta do freezer e ir cuidar da vida. Não queria, afinal de contas, ser arrastado pra fora do mercado por um segurança após meia hora derretendo os sorvetes da loja.
Apanhou o sorbet, jogou dentro do cestinho, e virou sobre os calcanhares.
Deu de cara com uma moça alta, cabelo castanho claro cortado estilo chanel, ombros largos, quase largos demais, mas apenas quase.
Era bonita à seu modo. Uma beleza não óbvia.
O nariz fosse dois milímetros mais longos, e ela seria nariguda. o queixo meio centímetro mais comprido, queixuda, os ombros um centímetro mais largos, a Rebeca Gusmão.
Mas ela tivera sorte, e todas essas medidas extras caíram-lhe o quadril, a deixando bastante desejável.
Ele levou uma fração de segundo pra pensar nisso, e, após essa fração de segundo, ela abriu um sorriso que o deixou absolutamente sem jeito.
-Fabiano?
Ela perguntou, sorriso aberto.
-Hã... É...
Confirmou Fabiano, sem muita certeza, não de que era o Fabiano, mas se a conhecia.
-Sou eu! - Disse ela abrindo os braços, como se isso removesse toda a névoa que cercava sua identidade. -Juliana!
-Ah... Juliana... - Disse o Fabiano, ainda sem ideia de quem era ela.
Ela jogou a cabeça pra trás, revirando os olhos num gesto de impaciência:
-Fitipaldi... - Disse. E mexeu o braço como se empurrasse um carrinho de brinquedo pelo ar fazendo "vuóóóóóóóóóóóm..." com a boca.
Ele entendeu.
Juliana Fitipaldi fora sua colega no ensino médio. Toda a vez que um professor dizia seu nome completo durante a chamada, seus colegas, Fabiano incluso, imitavam o barulho de carros de Fórmula 1.
Juliana e Fabiano jamais haviam sido próximos. Ela sentava no fundão da sala, andava com tipos a quem Fabiano desprezava de maneira veemente pela falta de compromisso com os estudos. Eram um bando de desajustados de boutique, que tinham os estudos pagos pelos pais e desdenhavam do trabalho dos professores.
Fabiano, que suava para pagar pelos próprios estudos, inclusive em trabalhos braçais, achava aquele povo do fundão abjeto. E, se eles tivessem a decência de frequentar as aulas de educação física, ele certamente teria tentado quebrar algumas pernas no tempo que estudou com eles.
Juliana Fitipaldi era algo como a musa daquela turma do fundo.
Ela própria uma filha de família abastada (embora sem nenhum parentesco com a dinastia Fittipaldi do automobilismo) que desdenhava dos professores e dos colegas mais aplicados, tinha no rosto uma expressão de diva de antigamente, como se visse o mundo como um lugar enfadonho do qual queria ir embora logo.
Sequer se dignava a rir ou reclamar da brincadeira do ruído de motores à menção de seu sobrenome, quando muito balançava a cabeça como se visse naquilo uma demonstração comezinha de reconhecimento por parte de inferiores.
Ao menos era assim que Fabiano via a coisa toda.
Estranhou.
Como já lhe passara pela cabeça, jamais fora amigo de Juliana.
Jamais fizera um trabalho com ela, jamais trocara duas palavras com ela, na verdade.
Conhecia seu nome porque ele era motivo de uma das brincadeiras escolares mais divertidas em que tomara parte, inclusive sendo elogiada por seu professor preferido como uma brincadeira saudável, divertida e bem coordenada, e também, claro, porque era difícil não perceber aquela mulherona atraente de mais de 1,80m de altura.
Mas como Juliana sabia o nome dele?
-Claro! - Disse ele, torcendo para que aquela reminiscência não tivesse durado no mundo real tanto quanto durara dentro de sua cabeça. - Juliana Fitipaldi... Tudo bem contigo?
-Tudo - Ela respondeu, dobrando o tronco e suspirando em sinal de alívio. -Fiquei com medo de tu não lembrar e eu fazer papel de idiota.
-Não, não... Imagina. Como é que eu ia esquecer da Juliana Fitipaldi... - Ele disse, tentando ser agradável. E completou:
-Vuóóóóóóm...
Ela riu.
-Que brincadeira boba... Mas eu gostava, sabe?
"Não parecia." ele pensou. Mas ao invés disso disse:
-Sim... O professor Alexandre achava bacana. Uma vez disse que a nossa turma era a preferida dele por causa das nossas brincadeiras bem coordenadas. Que nem aquela do lenço, lembra?
Alexandre, professor de História, dava aula com um lenço na mão. Suava em profusão enquanto fazia seu show diante dos alunos, de modo que, a cada duas palavras, tateava a própria testa com o lenço. Certo dia, todos os alunos apanharam pedaços de papel, e começaram a mimetizá-lo toda a vez que ele secava a testa. A brincadeira não fora ideia de Fabiano, mas de seu colega Vinícius, mas Fabiano espalhou a ideia garantindo que todos participassem da inocente pegadinha que arrancou gargalhadas do professor.
Juliana, porém, não lembrava:
-Guri, nem me lembro quem era Alexandre, imagina brincadeira de lenço...
"Isso não me surpreende.", Fabiano pensou. Mas ao invés disso falou:
-Fiquei surpreso de tu lembrar de mim...
Ela fez uma expressão de enfaro que a tornou extremamente repelente por um breve instante, mas amainou as feições quando disse:
-Ah, é... Até parece que alguma das gurias da turma iria te esquecer...
Ele, francamente não entendeu. Na verdade, entendeu o que ela havia dito, e o que queria dizer, mas não como aquela sentença e o sentido nela imbuído eram referentes a ele próprio. Externou sua confusão em busca de respostas:
-Como assim?
-Ah, tá... Até parece... Tu era o sonho de consumo de todas as gurias da turma... - Disse Juliana, dando uma piscadela.
-Eu era? - Duvidou.
-Claro, né, Fabiano. Tu era bonito, tinha umas coxas muito gostosas, tirava as melhores notas da turma, jogava bola, lutava boxe, guri sério, falava bem... Todas as gurias eram loucas por ti. A Ariana chegou a fazer aposta que ficaria contigo antes do fim do ano...
-Hã? A Ariana Dal'Acoletta? - Perguntou Fabiano, chocado. Ariana Dal'Acoletta era uma loiríssima menina de corpo mignon exceto por um avantajado par de seios que lhe valeu o nada lisonjeiro apelido de "tetas no palito". Era muito bonita de rosto, e, á despeito da desproporção de seus generosíssimos atributos mamários que a deixavam com pinta de estrela pornô e a faziam ser uma das preferidas nas fantasias dos guris, era uma moça séria.
-Sim. - Confirmou Juliana. - Ela era taradinha por ti, mas aí tu apareceu namorando aquela deusa do pré-vestibular...
Fabiano lembrava disso com certo orgulho. A deusa em questão era Helena, uma morena com todos os atributos de uma modelo de passarela. Era linda. Morena, alta, coberta de sardas, longos cabelos negros como a asa da graúna, virava pescoços por onde passava, e, por um desses acasos do destino, tinha amigos em comum com Fabiano, de quem era vizinha. Fora o namoro mais longo da vida de Fabiano. Mais de três anos...
-Sim... A Helena...
-É - Confirmou Juliana. -Até o nome da desgraçada era bonito...
Fabiano sorriu. Juliana continuou:
-Mas vai dizer que tu não sabia? As gurias tavam sempre sussurrando quando tu passava, quando tu falava...
Fabiano lembrava. Ele achava o cúmulo da falta de educação ficarem falando dele quando passava. Tinha certeza de que debochavam dele pelo fato de ser um nerd introvertido e pobre.
-Eu... Eu não percebi... - Simplificou.
-É... Olha, posso ser franca contigo? - Perguntou Juliana, pousando a mão no braço de Fabiano e deixando claro que não esperaria permissão verbal dele para ser franca efetivamente:
-Eu te achava um gato, mas te achava meio nojentão.
-Nojentão? - Ele perguntou, francamente surpreso.
-É - Ela confirmou. -Tu olhava pra todo mundo de cima... Meio condescendente. Tinha só dois ou três guris com quem tu falava, os outros tinham um pouco raiva de ti, ou inveja, sei lá... Porque, sabe, tu olhava pras gurias como se elas fossem todas uns lixos...Acho que isso também ajudou elas a gamarem, mulher gosta de ser desprezada... Ainda mais pelo galã popular... Tri high school americano, né?
Fabiano estava perplexo.
Como é que as pessoas podiam vê-lo como um "galã popular" estilo rei do baile? Ele era um nerd ensimesmado que lia gibis e ia ao cinema ver as versões remasterizadas de Star Wars... Sim, ele amava jogar futebol, ele chegou a treinar boxe por um tempo para não ser um completo clichê de nerd ensimesmado, e namorava a guria mais bonita da rua (e tinha muito orgulho disso), mas ele estava longe de ser um desses playboyzinhos engomados que se prestam ao papel de "gato da turma", sequer era bonito segundo os próprios padrões.
De fato sua disposição com relação ao mundo era defensiva, mas não superior. Fabiano apenas reagia ao que acreditava ver, e, de seus colegas, o que via era um bando de fedelhos ricos e mimados que o desprezavam.
Não disse nada. Tentava digerir o que Juliana Fitipaldi acabara de lhe dizer. Foi ela quem falou:
-E tu? Casou com a Helena?
-Não... Não. Nós terminamos quando eu ainda tava na faculdade... - Disse Fabiano, ainda concatenando as ideias.
-Entendi. Achei que à essa altura vocês iam estar casados, com três filhos lindos de cabelo pretíssimo e pele branquíssima viajando pra Europa nas férias escolares. - Ela disse, aludindo ao fato de Fabiano ser professor e Helena turismóloga.
-Não... - Ele sorriu. -Não juntos, pelo menos.
-Olha, eu tenho que ir - Ela disse. -Eu tenho três pestes pra cuidar e eles saem da aula daqui a pouco. - Se inclinou pra frente, fazendo hesitante menção de dar-lhe um abraço.
Fabiano, em outros tempo, teria estendido a mão. Acenado. Qualquer coisa para não ter contato físico com Juliana Fitipaldi e sua cara de enfaro para com o mundo. Mas haviam sido alguns minutos de descobertas. Abriu os braços e a acolheu. Ela lhe deu um beijinho em cada bochecha e se despediu dizendo "tudo de bom", e Fabiano nem sequer fez troça mental da despedida.
Olhou para o próprio cesto de compras. O sorbet de limão já devia ter começado a derreter. Abriu a porta do freezer para trocá-lo por uma embalagem que não houvesse sido exposta a tanto tempo sem refrigeração. Apanhou o pote verde de outro sorvete idêntico, mas o colocou de volta no freezer, pegando um pote de floresta negra.
Talvez, pensou, fosse melhor experimentar novos pontos de vista com mais frequência.

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