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terça-feira, 23 de outubro de 2018

Por Via das Dúvidas


Foram trezentos e sessenta e dois dias em que eu não coloquei a mão em um cachorro.
Quase doze meses.
Quase um ano.
O último desses leais animais ao qual eu oferecera um afago, havia sido meu camarada, o Gump, em quem fiz carinho durante os últimos minutos de sua vida na clínica veterinária que se tornara uma prisão de onde ele não sairia vivo. Entrar naquela clínica se tornara mais e mais difícil ao longo dos cerca de dez dias em que ele ficou internado conforme os veterinários me diziam que o quadro era isso, aquilo ou aquele outro, e, fosse qual fosse a moléstia que consumia o meu amigo felpudo, não tinha cura ou remédio.
Apesar da dificuldade, eu seguia rumando diariamente até a zona sul diariamente para passar uma hora com meu cachorro após o trabalho. E todos os dias eu deixava um pedaço da minha alma na clínica quando ele tentava, sem sucesso, se levantar para ir embora comigo quando o horário de visita terminava.
Eventualmente eu fui convencido de que mantê-lo daquela forma era cruel pois seus órgãos estavam parando de funcionar e seu quadro, que já era ruim, estava chegando perigosamente próximo de ser agônico.
Foi após essa conversa com a veterinária, que me informou que os rins dele já estavam comprometidos, que eu assenti em matar o meu melhor amigo para impedir que ele sofresse ainda mais.
Isso foi no último dia 25 de outubro. Quase um ano atrás. E, não.
Eu não superei.
Chega a ser ridículo, considerando tudo o que eu já superei na vida. Mas a verdade é que o que eu disse então, que o espaço que o meu cachorro deixava no meu coração jamais seria preenchido, segue sendo verdade ainda hoje.
Não foi.
Não acho que será.
Se todos os dias enquanto volto da academia pra casa por volta das cinco e meia, seis da tarde, eu já não sou mais acometido pela ideia impensada de chegar em casa e levá-lo para uma caminhada, eu ainda levo um murro emocional no estômago por ser confrontado por dezenas de pessoas que andam com seus cachorros pela rua no horário. E quando vejo um outro cachorro da mesma raça, grande, amarelo e felpudo, isso é multiplicado. Eu não me sinto confortável em admitir que, por vezes, fico com os olhos rasos d'água ao cruzar com um golden retriever nas calçadas do centro de Porto Alegre, mas não posso negar que isso acontece. Perder aquele cachorro foi, sim, uma das experiências mais dolorosas da minha vida, e eu sou o primeiro a reconhecer o absurdo dessa colocação já que perdi membros da família e amigos em períodos próximos. Eu sei que era só um cachorro.
Mas não era. Não pra mim.
Pra mim, era um amigo querido e leal. E um amigo querido e leal que dependia de mim e de quem eu não soube cuidar no final.
Seja como for, desde então eu não encostei minha mão em outro cachorro.
Ainda gosto de cachorros. Muito. Alimentei cães de rua. Doei rações e remédios para abrigos de animais... Eu gosto de cachorros. Só não queria encostar em outro. Só não quero ter outro em minha vida. Já tive um cachorro. Meu cachorro morreu.
E, alguns dias atrás, quando voltava pra casa pela orla remodelada do Guaíba, em um dia onde a ausência do meu amigo peludo não doía tanto, vi um homem sentado na grama com dois cães da mesma raça. Eles pareciam uma fêmea jovem e um macho já maduro.
Eu vi os cães e passei à distância, vendo-os cheirando o capim em volta.
Pensei na felicidade de sentar na grama com meu amigo. E em como deveria ter feito isso mais vezes.
No dia seguinte, os vi novamente. Mais ou menos no mesmo lugar. Enquanto a fêmea jovem se reborcava na grama esfregando as costas no chão, o macho mais velho, estava apenas deitado descansando.
A visão de um cachorro se refestelando na grama é uma das mais gostosas que eu consigo imaginar e vê-los fazendo isso sempre coloca um sorriso na minha carranca. Eu sorri olhando a fêmea brincar e naquele momento o macho se levantou e avançou em minha direção abanando sua cauda de espanador da mesma maneira que meu velho amigo fazia. Ele lambeu minha mão, e ficou de pé nas patas traseiras para me abraçar.
E eu o afaguei, sentindo seu pelo macio na minha mão e o movimento de sua respiração arfada em meus braços.
Eu afaguei sua cabeça, atrás de suas orelhas e suas costelas. E lhe disse que era um bom cachorro. Que era o que eu fazia com o Gump.
Quando ele me largou, e eu tentei seguir meu caminho, ele me seguiu por alguns passos, ainda tentando lamber minha mão, e forçando seu dono a ir até ele e segurá-lo.
Trocamos um sorriso rápido e eu segui pra casa. Chorei o resto do caminho. E continuei chorando no banho. O que foi um pouco demais até para o rematado chorão que eu sou.
Nos dias que se seguiram, eu não voltei a vê-los, o homem e seus cachorros.
O tempo esquentou. Mais umidade. Choveu... Não convém levar cães felpudos para a beira do rio em dias assim, racionalizei.
Racionalizei, também, que os golden retrievers são cães naturalmente amistosos. E o Gump era a exceção com sua rabugice perene com estranhos, então não havia nada de anormal na atitude amistosa do cachorro, e que a única coisa marcante nela era o fato de ter posto fim a quase um ano sem que eu fizesse contato com um cachorro.
Racionalmente eu sei de tudo isso.
Irracionalmente, eu poderia fantasiar que, em algum lugar, meu velho amigo sente tanta saudade de mim quanto eu sinto dele. E deu um jeito de vir receber um afago após quase um ano de ausência... Eu poderia fantasiar que os afagos e o elogio não foram o suficiente e que na próxima vez em que nos encontrarmos, eu preciso abraçá-lo de volta. Talvez deitar na grama com ele. Talvez lhe dar um beijo estalado na testa enquanto coço seu pescoço... Mas óbvio... Isso seria bobagem.
Meu amigo se foi. E o cachorro que eu afaguei à margem do rio alguns dias atrás, era apenas um amistoso cão da mesma raça.
Ainda assim, eu não sou o dono da verdade, e por via das dúvidas, eu seguirei fazendo o mesmo caminho de volta pra casa depois do trabalho.
Ao menos no decorrer do próximo ano

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