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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Rapidinhas do Capita


Leopoldo tinha um olho de vidro. Perdera seu olho de verdade em um acidente envolvendo um momento de descuido de sua mãe, um fervedor de leite e a curiosidade e audácia que permeia os atos de qualquer fedelho de sete anos de idade.
Perdeu o olho direito nesse acidente. Fora isso, quase sem cicatrizes. Vivia perfeitamente bem após se recuperar. Seu olho de vidro era bem feito. Do mesmo tamanho e cor do outro, apenas sem movimento e com um brilho ligeiramente diferente. Ninguém notava, exceto prestando muita atenção durante as conversas com Leopoldo, e ainda assim, tinham que estar perto.
Leopoldo, porém, cresceu com a impressão de que, o tempo todo, pelas suas costas, falavam de seus olho de vidro. Que o chamavam de nomes, que se referiam á ele como o esquisito caolho.
Uma vez quase teve uma séria altercação com o pai de um menino que cantarolava inocentemente "eu sou o pirata, da perna de pau, do olho de vidro, e da cara de mau" enquanto ele passava.
Leopoldo era assim... Desconfiado.
Quando conheceu Cláudia, e gostou dela, engrenou um quase namoro, que só se tornou namoro de fato após ele dizer pra ela, com todas as letras, que era caolho:
-Cláudia... Eu quero muito namorar contigo. Mas vou entender se tu não quiser por causa... Da minha deficiência.
-Deficiência?- Perguntou Cláudia.
-É... O meu olho.
-O que tem o teu olho?
-Ora, o que tem... Eu não tenho o olho direito... Esse da cicatriz. Eu perdi ele.
-Mas e... E esse aí? É postiço?
-Sim. Tu vai me dizer que não tinha percebido?
-Não... Sempre achei que fosse natural...
-Ah, não vem com essa Cláudia... Tu nunca reparou que ele é estático? Que eu olho pra um lado com o olho esquerdo mas o direito tá sempre virado pra frente?
-Nunca, juro...
-Não... Não precisa ser condescendente comigo, tá... Eu não sou tão complexado.
-Não tô sendo condescendente. Nunca tinha reparado, mesmo.
-Ah, pára com isso... Fala direito comigo...
Discutiram feio. Mas superaram. Cláudia disse que não ligava se o olho de Leopoldo era verdadeiro ou protético. Amava-o inteiro independentemente daquele detalhe.
Tornaram-se namorados... Depois noivos, depois marido e mulher, e então pais, eventualmente avós e até bisavós. Tiveram uma vida longa, repleta de felicidade, completude e geraram filhos que cresceram em lares de amor e paz e que, no seu tempo, construíram também lares de amor e paz para seus filhos crescerem.
Leopoldo morreu em casa, aos oitenta e seis anos de idade, dormindo em sua cama.
No funeral, enquanto recebia os pêsames de parentes de toda a parte, Cláudia confidenciou à filha mais velha:
-Teu pai era um homem maravilhoso, mas desde que o conheci aquele olho dele sempre me deu... sei lá... Uma agonia...
Pois é. Quem disse que amor baseado em uma mentira não gera frutos maravilhosos?
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Por que é tão difícil? Por qe as coisas não permanecem simples como já foram um dia? pensou ele.
Tempo bom, mas bom, mesmo, era aquele em que eu bateria na cabeça dela com uma clava, a arrastaria para a minha caverna e viveríamos felizes para sempre até eu morrer comido por um tigre dentes-de-sabre ou de velhice aos 37 anos de idade... Aquilo era a essência de uma relação bem sucedida baseada na simplicidade, ele concluiu.
Mas esse tempo acabou. Infelizmente, ele vive em tempos modernos repletos de tendências que mudam á cada vinte e quatro horas e onde o romantismo morreu pra maioria, mas ainda está ali, embalsamado na sala de outros e ninguém sabe ao certo como agir com relação á isso.
É por essas e por outras que ele anda desse jeito. É por não saber como agir.
Ou, pior ainda. Por saber como agir mas não poder. Ou por poder, mas não na totalidade de suas intenções. Por saber o que quer, achar que tem chance de fazer dar certo, mas não poder tentar.
E ele vai fazer o quê? Pedir extensão?
"Olha, me dá um tempo aí que eu prometo que engrena, valeu?"
Que tipo de verme desprezível faria isso? E ele vê, á cada dia mais palpável, o momento em que algo vai acontecer, a fila vai andar e ele vai desejar que ela seja feliz como sempre mereceu ser, e vai se amaldiçoar por não fazer parte disso.
E vai se tornar um velho sozinho que cria cobras, que se veste e fala como o imperador Palpatine, e que rasga a bola das crianças da vizinhança que caem em seu quintal e pendura elas como troféu no arame farpado sobre o muro de sua casa escura.
Será que é melhor sumir? Ele pensa...

2 comentários:

  1. que coisa....que tipo de situação deixa o sujeito de mãos atadas dessa tal forma? Saber o que deve ser feito mas não poder fazer é bem angustiante mesmo,mas são poucas as situações assim. Na maioria das vezes a vida coloca agente diante de coisas as quais temos chance- claro que em 90 % dos casos não da certo, mas blz - agora, ficar diante de algo que se quer e não poder nem tentar ?
    Isso é mais cruel do que cantar a música do Zeca Baleiro perto de um caolho.

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  2. Isso me parece a citação do Diabo em "advogado do Diabo": "olhe, mas não toque. Toque mas não prove. Prove, mas não engula"

    Não seja um... um... gato escaldado, vai por mim, a gente perde muito!

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