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terça-feira, 26 de abril de 2011

Caráter


Era uma manhã abafada e quente de verão. Estavam, ele e ela, sentados na mesa acanhada de uma acanhada lanchonete na beira de uma estrada localizada entre longe pra cacete e lá no raio que o parta. Viajavam juntos pela primeira vez, casamento de um primo dela. Morava no interior, teria casório com a igreja da praça da matriz decorada e festança no salão paroquial, depois.
Ela o convencera, sem muito esforço a ir junto. Agora ali estavam, após três horas de viagem, parados esperando o atendimento. sorriam um para o outro, olhando-se nos olhos. Ele segurava a mão dela acariciando-a com o dedo indicador. Se conheciam a pouco tempo, tirando o tempo em que se conheciam de vista na vizinhança, haviam começado a sair a menos de um mês, haviam ido ao cinema, a shows de música, à danceterias, e jantares, e ele já sabia que ela era a mulher de sua vida. Não apenas por que ela era linda, e ela era. Muito. Um harmonioso conjunto de detalhes que iam dos longos cabelos castanho-claros bem lisos até os pés tamanho trinta e seis, passando pelos olhos castanho-claros, o nariz lindo, o sorriso divino, e que se aliavam pra formar aquela moça linda e muito, muito cheirosa. Essa, aliás, era provavelmente uma das razões por que ele era apaixonado de maneira irremediável por ela:
Ela estava sempre cheirosa. Incrivelmente cheirosa, muito, muito deliciosamente cheirosa. Ela acordava de manhã cheirando bem, e depois do banho, ih, meu amigo, depois do banho até covardia era.
Enfim, ele sabia que ela era o seu sonho e a sua idealização feitos mulher e por algum desses estranhos acasos do destino colocada em seu caminho.
Se ele não tinha dúvidas de que ela era tudo o que ele queria da vida, ela não nutria o mesmo entusiasmo com relação a ele. Não que ela não gostasse dele, de maneira nenhuma, se não gostasse, ela não sairia com ele, simples assim. Mas ela procurava algumas coisas, algumas qualidades bastante específicas em um homem.
Ela queria mais do que boa retórica, aparência razoável e cultura inútil. Ela queria caráter acima de tudo. Queria um homem que estivesse disposto a fazer sacrifícios por ela e pela família. Não que quisesse arrancar o couro de um pobre coitado em uma relação doentia, não. Ela era dona do próprio nariz, trabalhava, cuidava e suas coisas e ia atrás do que queria. Mas queria saber que o homem com quem fosse passar o resto da vida seria capaz de colocar as coisas em perspectiva como ela sabia que faria um dia, com as necessidades dos seus à frente das suas próprias. Achava que era a melhor maneira de uma família funcionar, mas ainda não sabia se ele, por mais gentil que fosse e mais apaixonado que parecesse era capaz de fazer isso, portanto, ia devagar e com andor.
Ali estavam, sorrindo um para o outro, olhando-se nos olhos. Ele segurando a mão dela e acariciando-a com o dedo indicador. Finalmente o atendente da lanchonete, um sujeito gordo que tinha a pele tão engordurada quanto o avental curto que pendia em sua cintura, se aproximou. Com voz tonitruante perguntou o que queriam. Ela pediu uma torrada, ele quis um cheese coração. O sujeito anotou os pedidos e perguntou o que iriam beber.
-Uma Coca seicentos. - Ela disse.
-Só lata. - Replicou o atendente.
-Pode ser.
-Uma Soda limonada, pra mim. - Ele pediu.
O atendente saiu arrastando os pés e então voltou com uma suada lata de coca em uma mão e um copo na outra, colocou o copo diante dela e abriu a latinha, servindo metade do copo. Virou-se pra ele.
-Não tem mais Soda.
-Pode ser uma Sprite.
-Também não tem.
-Fanta laranja?
-Só Fanta uva, e fora do gelo. Gelada tenho uma lata de Coca, que é a última, pode ser?
-Nah... Me traz uma Fanta uva, mesmo.
-Tá quente. - Advertiu o atendente.
-Sem galho.
O atendente saiu arrastando os pés, e voltou limpando o pó da lata roxa com o avental. Abriu a lata e serviu a beberagem que espumou até quase transbordar o copo, saindo em seguida.
Ela se inclinou pra frente.
-Que mal servido, né?
-Arram. - Ele concordou tomando um gole do refrigerante.
-Por que tu não pediu a coca?
Ele fez uma careta enquanto engolia. - Tu queria um refrigerante seicentos mililitros, eu te conheço, tu come pouco mas toma refrigerante até por dentro dos olhos, quando tu terminar de comer a tua torrada a tua latinha vai estar mais seca que o deserto do Sahara e tu vai querer tomar mais refrigerante. Eu tomo qualquer coisa, tu só toma coca, então eu quis deixar a outra latinha que ele tem pra ti.
Ela sorriu enternecida.
-Mas fanta uva morna?
-É horrível - Ele concordou. - Mas depois tu tira o gosto ruim da minha boca com uns beijos. - Concluiu sorrindo.
Ela sorriu e deu um gole na sua Coca geladinha. Talvez ele fosse, afinal, o homem da sua vida. Fanta uva morna no verão, era, afinal de contas, uma tremenda prova de caráter.

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