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quarta-feira, 13 de abril de 2011

Á prova


Abelardo e Heloísa, como seus homônimos históricos, se amavam. Eram loucos um pelo outro, estavam sempre juntos, e amavam passar tempo juntos. Fazia sentido, entende? Quem os olhava dizia "esses dois vão acabar se casando...", e dava mesmo, essa impressão. Não apenas de que se casariam, mas de que seriam muito felizes enquanto vivessem, tamanha era a compreenssão que havia entre os dois, e a seriedade e o respeito com que se tratavam.
Até que uma vez, o Abelardo e a Heloísa, passeando pelo shopping, entraram em uma loja de instrumentos musicais. Nenhum dos dois tocava nada, mas entraram apenas pelo prazer de olhar. Lá dentro, encontraram um sujeito imenso, de cabelos compridos e pintados de preto, vestido com um sobretudo de couro, á despeito do calor, usando coturnos, camiseta preta rasgada, e pulseiras com rebites e um crucifixo de ponta-cabeça pendurado no pescoço. Mais espantoso do que ver essa criatura esquisita, foi Abelardo ver que Heloísa o conhecia, e cumprimentá-lo com um caloroso abraço.
-Abelardo, esse é o Goatil Tormenthl.
-Quem?
-Pode me chamar de Ulisses - O grandalhão disse com voz cavernosa e sombria.
Conversaram animadamente o Ulisses Goatil Tormenthl e a Heloísa. Abelardo descobriu que o sujeito tinha uma banda, e acabaram convidados a um show que aconteceria em uma casa abandonada perto do Hospital Divina Providência. Por insistência da Heloísa, foram.
Abelardo não gostou do programa. Estava de calça jeans, tênis e camiseta braca, parecia um farol em meio aos demais presentes, todos vestidos de preto com detalhes em cinza, e ás vezes vermelho-sangue. Estranhara quando Heloísa, toda de preto em frente à sua casa lhe perguntara se ele queria trocar de roupa, mas ele dissera que se sentia bem como estava.
A tal da banda se chamava Tormented Children of Baal, e quando subiram ao palco com os rostos pintados de branco e preto, parecendo defuntos, Abelardo foi o único a rir. Parou de rir quando eles começaram a tocar, pois Abelardo achou que eles estivessem tentando quebrar os instrumentos. Só ficou mais chocado ao ouvir a voz do Ulisses Goatil Tormenthl no microfone, ele parecia querer tirar alguma coisa imensa da garganta, e não dava pra entender nem uma palavra do que a letra da canção dizia.
-Isso é o dialeto Orc de O Senhor dos Anéis? - Perguntou à Heloísa, que dançava assustadoramente se sacudindo inteira.
-Não! É Alemão! - Gritou um rapaz gordo de cabeça raspada e cavanhaque cumprido que se balançava feito um epilético longo à sua esquerda.
Abelardo duvidou que fosse Alemão, mas não quis criar celeuma. Após o show, que foi muito, mas muito, mais muito mais longo que Abelardo achou que seria, Ulisses Goatil Tormenthl, todo suado, foi pessoalmente até o casal lhes presentear com um CD da banda. A capa mostrava o que parecia ser uma mulher nua coberta apenas por um crânio que lhe servia de colar, com os pulsos cortados e a poça de sangue que lhe escorria das mãos formando a cabeça de um bode mais ou menos do mesmo formato do pentagrama invertido que emoldurava o desenho, todo feito em tons de preto, branco, cinza e vermelho.
-Pô, que pra cima... - Comentou Abelardo, rindo casualmente, sob os olhos semi-cerrados e ainda pintados de Ulisses Goatil Tormenthl.
Foram tomar uma cerveja com o vocalista, Heloísa e ele comentavam sobre as influências da banda dizendo trocentos nomes que ele nem sabia e nem tinha certeza se queria saber pronunciar.
Lá pelas tantas, alguém falou alguma coisa sobre a mãe ter reclamado das caveiras, e Ulisses, com pose de magistrado, disse que as caveiras eram um símbolo de igualdade, pois por serem todas iguais, não havia espaço para preconceito entre os metaleiros.
Abelardo, rindo bastante enquanto tomava sua água com gás, perguntou por que eles não admitiam que escolheram caveiras por que caveiras eram maneiras. E completou:
-Eu adorava caveira quando era pequeno e não tinha essa punheta toda de "igualdade", que discurso mais bobo, Ulisses, francamente. Caveira é legal, vocês acham legal e deu...
Abelardo nunca soube ao certo se fora o fato de ele ter diminuido, ou ridicularizado o discurso pró-caveira do Ulisses, ou se foi por tê-lo chamado de "Ulisses" e não de "Goatel Tormenseiláoquê", que desencadeou a confusão. Ele sabia é que tinha quebrado uma garrafa na cabeça do cara depois de ser pêgo pelo colarinho, e que só conseguiu sair ileso do tumultuo por que Heloísa era estranhamente bem relacionada no meio daquele povo todo.
Só mais tarde Abelardo descobriu que Heloísa fora namorada do Ulisses, e que chegara a andar fantasiada de vampiro e até atendera pelo nome de Nokturth Heloísaahl, mas não se importou.
O namoro só terminou quando Abelardo foi incapaz de segurar um violento acesso de riso ao ver uma foto de Heloísa vestindo um corpete vermelho sangue fechado com cadeados e correntes sobre uma blusa preta rasgada, calças de vinil preto e coturnos até os joelhos, segurando um cetro com um crânio e um morcego, com o rosto repleto de pó de arroz, lábios e olhos pintados de preto, e mechas brancas no cabelo.
Não adiantava, por mais compreenssivo que o Abelardo fosse, não havia romance que suportasse determinados testes.

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