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quarta-feira, 18 de abril de 2012

Um pouquinho de amargura


Aconteceu. Simplesmente. Sem nenhuma espécie de aviso. Foi automático como costumam ser as coisas definitivas.
A Lourdes acordou naquela manhã de quinta-feira, e nem imaginou que, no fim do dia, aquilo teria acontecido.
Ela deixou de gostar do Rafael.
Tão estranho, especialmente quando se considerava tudo... A Lourdes era apaixonada pelo Rafael, apaixonada mesmo, de forma visceral, incoercível... Ela mudou sua vida por causa do Rafael, venceu distâncias e medos, encontrou mais coragem do que supunha caber em si para estar com ele. A Lourdes fez e aconteceu por causa do Rafael.
E, embora o Rafael não tivesse feito e nem acontecido por causa da Lourdes, embora ele fosse incapaz de arroubos de romantismo e grandes demonstrações de afeto, o Rafael era, também, apaixonado pela Lourdes com tudo o que tinha. Com coração, alma e cérebro. Especialmente cérebro, que depois de fígado, era o que o Rafael mais tinha.
O Rafael era louco pela Lourdes. Ele jamais disse o quanto era. Em parte porque achava que, em seu tom de voz monocórdico, uma declaração de amor teria tanto impacto quanto uma receita de limonada, e, em segundo, porque tinha medo de se abrir. O Rafael não via como alguém especial como a Lourdes, que tinha todos os predicados que qualquer homem com um neurônio e meio funcionando dentro da cabeça procurava em uma mulher, poderia se afeiçoar a ele. Na verdade, na mente distorcida de Rafael, ele montava diversos cenários, todos muito elaborados, em que a Lourdes achava ele muito legal com um grande perímetro entre eles, e que, assim que essa zona de conforto era vencida, a Lourdes percebia que o que pareciam algumas particularidades interessantes na personalidade do Rafael, não passavam de defeitos.
De qualquer modo, a Lourdes não conhecia esses cenários mentais do Rafael, e, pessoa espetacular que era, foi à luta. E conseguiu vencer as barreiras do Rafael. Todas e cada uma delas. E ele se tornou dela. Tão dela quanto podia ser. Ainda que permanecesse incapaz de demonstrar, ainda que tivesse nós a desatar, e situações a resolver... Ainda era dela.
E, mesmo sendo dela, tentou se afastar, não para esquecê-la, tarefa que não apenas era impossível mas também era algo que ele, em sã consciência jamais quereria fazer, e até escolheu o caminho do afastamento, o Rafael, na esperança de manter a pureza do que sentia em relação à Lourdes, mesmo sentindo certa pieguice e risibilidade naquele intento.
Aconteceu que, pro Rafael, ficar longe da Lourdes era particularmente difícil. Não saber dela, não ter notícias. Era complicado, doloroso. Talvez, inclusive tenha sido aí que o Rafael percebeu que era muito mais do que uma paixonite ou mera atração física o que ele sentia pela Lourdes. Ele de fato se importava com ela, ele de fato gostava dela. Admitia até que talvez a amasse, se é que ele era capaz de tal coisa.
De toda a sorte, se reaproximou de Lourdes. Quase impôs sua presença na vida dela, coisa que, em qualquer outra situação, teria evitado tanto em nome do amor-próprio quanto do respeito ao espaço alheio. E ela o acolheu, generosa que era.
Mas nessa acolhida ficou claro, tanto para Lourdes quanto para Rafael, que ela já não gostava mais dele...
Ao menos não como antes.
Talvez fosse pelo fato de ele inadvertidamente tê-la magoado em mais de uma ocasião. Talvez fosse por ela ter percebido que ele era um santo com pés de barro. Ou, quiçá fosse exclusivamente por ela ter-se decidido a não mais depositar tantas esperanças em um ser-humano tão falho quanto ele era. Mas independente do que fosse, o fato é que ela já não tinha o mesmo entusiasmo, a mesma força, a mesma alegria de partilhar tempo com ele. Já não o amava.
Rafael, em um primeiro momento sentiu raiva. Ficou magoado, triste. Mas então percebeu que finalmente pudera desempenhar um papel positivo na vida de Lourdes:
Pudera ser elemento do processo de cura que lhe permitiria voltar a abrir seu coração. E ela merecia voltar a abrir seu coração. E alguém havia de merecer passagem até lá.
Rafael continuaria sorrindo quando a encontrasse. Continuaria sentindo-se grato por saber dela e ser parte, mesmo que uma pequena parte, do seu dia-a-dia. E seguiria a amando de coração, tripas, cérebro e até de fígado, pois o amor não consumado, mesmo o mais sincero e incoercível, tem direito a um pouquinho de amargura.

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