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quarta-feira, 5 de junho de 2013

Zumbi



Dava pra dizer, só de olhar pra ela, que ela seria bonita quando ficasse mais velha.
Não que fosse feia. Longe disso. Era uma moça bonita. Cabelos castanho-escuros quase pretos bem lisos, olhos azuis, magra, alta, maçãs do rosto bem acentuadas, nariz bem feito. Era uma moça bonita.
Mas notava-se, nos seus traços, que ela ficaria mais bonita conforme o tempo passasse. Bastava que não saísse a fazer plásticas, preenchimentos e aplicações de botox igual uma desvairada, e ela envelheceria bem e com dignidade e beleza, sim. Como fizeram Kim Basinger, que é uma coroa bonita, Catherine Deneuve, Raquel Welch, Blythe Danner, todas elas mulheres que souberam envelhecer.
A moça da cafeteria, em seu avental preto, calças jeans e blusa de lã mesclada de preto e cinza era, também, esse tipo. Tinha esse rosto. De quem envelheceria bem, se soubesse envelhecer.
Ela se aproximou, cheirava bem. Era outra coisa boa do inverno, além da temperatura fria, o fato de que, se uma pessoa saia de casa cheirosa e perfumada, permanecia assim durante um dia inteiro. A moça cheirava bem. Doce, mas não enjoativo. Um perfume discreto, perceptível apenas na proximidade. Ela se esgueirou suavemente a seu lado, e enquanto pousava a xícara à sua frente, ele sentiu o perfume exalando do pescoço dela. Longo, branco e fino. Com alguns fios do cabelo escuro teimando em escapulir do coque que ela usava.
-Açúcar...
Ela anunciou com um sorriso, pousando o açucareiro de aço inox sobre a mesa. Ele teve um déjà vu, sua avó tinha, em seu antigo apartamento da Fernando Machado, um açucareiro igual... Sempre repleto de açúcar cristal. Ele nunca soube por que não açúcar refinado, mas era sempre cristal na casa de sua avó, que ele comia às colheradas quando queria um doce e não havia nenhum, e sentia quebrar nos dentes quando mastigava, faceiro...
A moça bonita pousou o pratinho com a empada diante dele e saiu.
Ele comeu uma mordida da empada minúscula no centro do prato. Frango temperado com cebola e pimentão... Não gostava de pimentão e muito menos de cebola. Fria no meio, quente de queimar a língua por fora... Males de iguarias congeladas. Sentiu-se mastigando uma fralda suja após engolir a camada de massa. Largou a empada e bebeu um gole do café. Estava bom. Ao menos para seu gosto.
Não era lá um grande perito em café. Não costumava tomar café. Nem gostava. Então sua percepção acerca da infusão fumegante diante de si na xícara de louça branca rajada de vermelho e rosa podia estar equivocada. E o café podia estar ruim. Capuccino... Lembrou-se de Hudson Hawk. Aquele capuccino estaria ao gosto do Falcão...? Estava ao seu. Exceto pela falta de açúcar. Serviu-se de uma colherada, então outra, e uma terceira. Mexeu, experimentou... Doce demais. Devia ter parado na segunda. Não era mais criança, seus gostos haviam mudado...
Bebeu o café olhando algumas canecas muito bonitas na vitrine da cafeteria.
Sua amiga se mudara recentemente, reclamara que estar bebendo refrigerante apenas em lata ou direto do gargalo, pois tinha apenas três copos e quebrara dois na mudança e se recusava a beber Pepsi em taça.
Resolveu comprar uma caneca ou duas para ela na saída.
A moça bonita voltou, parou ao seu lado e se agachou:
-A empada ficou ruim?
Parecia grave em seu questionamento. Ele tentou ser político:
-Não... Não tá ruim, não. Só está um pouquinho fria no meio...
-Já falei pra não congelarem... Eu aqueço de novo, pra ti.
Não esperou resposta, apanhou o pratinho com cuidado, e diligentemente o levou consigo para trás do balcão.
Voltou após um minuto, com a empada fumegando sobre o prato. O pimentão e a cebola derramando-se de dentro do invólucro de massa. Ele sorriu um sorriso feio e agradeceu puxando o prato para si.
Comeu a empada rápido, três mordidas, deixando o recheio no meio da massa o máximo que pôde para disfarçar o sabor e a textura dos temperos... Bebeu um longo gole do café, já não mais tão quente, e respirou fundo. Vencera a empada de cebola e pimentão com aroma de frango. Sorveu mais um gole do café. Não gostava, mesmo, de café, lembrava-se a cada gole.
A moça voltou, recolhendo o prato vazio.
-Estava melhor?
-Sim. - Ele respondeu. -Bem melhor, obrigado.
A moça passou um pano branquíssimo sobre a mesa, afastando os farelos da massa podre dele, ele sentiu o perfume dela, novamente. Perguntou:
-Muito bom o teu perfume. Qual é?
Ela ergueu as sobrancelhas e olhou pra cima, ruborizando brevemente:
-Hã... É do Boticário... Nada de especial. Floratta in Rose...
-É bom. Gostoso.
Ela sorriu e voltou pra trás do balcão. Um homem entrou, perguntou se vendia cigarros. Ela respondeu negativamente e ele riu, dizendo que café pedia cigarros. Ela sorriu amarelo, dizendo que não podia fumar ali dentro. O sujeito foi embora. Uma mulher entrou e comprou um salgado pra viagem.
Ele terminou o café. Levantou-se, vestiu o casaco e enrolou o cachecol no pescoço. Foi até o balcão. Pagou o café e a empada. A moça devolveu-lhe o troco.
-O café estava bom?
-Muito bom, sim. Obrigado.
"Porque eu digo tanto 'obrigado'?", pensou...
-Que bom. - Ela respondeu.
Ele perguntou:
-As canecas da vitrine, são só decorativas ou estão à venda?
-Estão à venda. - Ela respondeu, rápida enquanto se levantava. -Vinte e cinco cada uma.
Ele olhou brevemente a vitrine pelo lado de dentro.
-Vou levar duas... Posso escolher ali?
-Claro. - Ela disse enquanto saía de trás do balcão e corria até a vitrine, que abriu com uma chave que trazia num molho no bolso frontal do avental.
Ele olhou as canecas por algum tempo e escolheu duas. Uma dos Beatles, estampada com a capa do álbum Abbey Road e outra de Game of Thrones, com a bandeira da casa Lannister, o leão dourado sobre o fundo carmesim.
-Embrulha pra presente?
-Claro. - A moça bonita respondeu.
-Pode colocar as duas num embrulho só. Vão pra mesma pessoa. - Ele explicou.
-Deve ser uma pessoa especial. - A moça bonita comentou.
-Muito. - Ele respondeu. -É uma das minhas melhores amigas.
O olhar da menina foi indefinido do outro lado do balcão.
"Ela tá pensando que eu sou uma vasta de uma bichona..." Ele supôs enquanto se recriminava por não saber escolher melhor suas palavras. Ficou observando a moça bonita trabalhar. Com apuro e capricho dobrava o papel de lá pra cá e daqui pra lá dando-lhe forma. Um bonito embrulho desenhou-se de alguns poucos movimentos.
-Uau! - Ele exclamou -Tu é boa nisso.
Ela enrubesceu novamente e riu:
-É... Mais ou menos. Eu fazia origami.
-Eu não sei fazer nenhum origami... - Ele confessou. -Quando era moleque nem aquele sapinho que pulava eu sabia fazer.
-Mas aquele é o mais fácil! - Ela o recriminou.
-Eu sei... - Ele reconheceu.
A moça bonita sorria. Terminou o embrulho e o colocou em uma sacolinha branca. Entregou a ele. Ele apanhou o pacote e sacou a carteira para pagá-la. Ela lhe devolveu o troco com um sorriso e deu uma piscadela:
-Espero que a tua amiga goste do presente. Eu gostaria.
Ele sorriu. Quando saiu da cafeteria, flagrou-se:
"Eu estava flertando?", perguntou. Teve certeza de que sim, após repassar a conversa mentalmente. Estava flertando. Nunca fora bom nisso. Pelo contrário. Sempre foi péssimo. Mas aparentemente flertara de forma inadvertida. Talvez tenha sido um reflexo natural dada a beleza da moça. Talvez ele tenha flertado como pedido de desculpas por não gostar da intragável empada de cebola e pimentão com frango. Quiçá nem tenha flertado e estivesse se culpando de graça. Não sabia. Mas sentiu-se incomodado.
Pensou nela.
Pensou que a estava traindo. Não fazia sentido, ele sabia. Mas ele era assim.
Se incomodava com essas coisas. Sentia ciúmes da Daenerys Targaryen com Daario Naharis porque ela estava traindo o Drogo. Ficava incomodado com uma vinheta do Glee porque aquela menina nariguda aparecia suspirando com um sujeito que não era seu namorado, passou anos detestando Mary Jane e Deb Whytman porque elas não eram Gwen Stacy...
E agora sentia-se traindo ela.
Pensou se ela andava paquerando.
Sabia que ela era paqueradora. Ela mesma já havia confirmado. Ela tinha esse jeito. De menina que paquera por esporte. Era bonita. Tinha sobrancelhas que eram um convite ao pecado. Pernas de parar o trânsito, sorriso de propaganda de pasta de dente. E paquerava, pois era jovem, bonita e viva... Ele tinha ciúmes. Claro que tinha, mas jamais pensou em sair paquerando em represália.
Até porque não era mais tão jovem... Nunca fora bonito...
E sem ela, nem sequer estava vivo.

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