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terça-feira, 10 de maio de 2016

Orgulho Paterno


A Valquíria, oito aninhos, cabelos castanho-escuros presos em maria-chiquinhas nas laterais da cabeça, vestido cor-de-laranja, pés enfiados em tênis All-Star azuis tamanho 25, deitada no chão fazendo a lição de casa, perguntou, casualmente ao Sandoval, seu pai, quarenta e tantos, sentado na poltrona lendo o jornal qual era o nome dos três reis magos.
-Paiê... Qual é o nome dos três reis magos? - Quis saber com a voz estridente, apenas erguendo a cabeça do caderno.
-Três reis magos. - Respondeu Sandoval, monocórdico, sem tirar os olhos do jornal.
-Quê? - Quis saber a Valquíria, confusa.
-O nome dos três reis magos é três reis magos. Que eu saiba eles não tem nenhum outro nome... - Esclareceu Sandoval.
-Não, pai... - Suspirou Valquíria. -O nome de cada um deles, não do grupo.
-Ah... - Entendeu Sandoval.
E congelou.
Após oito anos de paternidade, deparava-se com uma fronteira absolutamente nova:
Não sabia o que responder para a filha.
Sandoval não lembrava dos nomes dos três reis magos. Pra ele eram apenas os três reis magos. Nem sabia que eles tinha nomes além daquilo, ora que diabos. Mas fazia sentido. Os Vingadores eram Capitão América, Homem de Ferro, Hulk, Gavião Arqueiro, Viúva Negra e Thor, as Meninas Super-Poderosas eram Florzinha, Lindinha e Docinho, os Três Reis Magos não deviam ser Um, Dois e Três.
Que diabos... Como se chamavam os três reis magos? Eles traziam ouro, incenso e mirra, será que tinha relação?
O que trazia ouro se chamava Midas, o que trazia incenso se chamava Hippie, e o que trazia mirra... O que é que era mirra, mesmo? Uma planta? Um óleo? Um óleo de planta?
Meu Deus do céu... Os três reis magos... Como eles chamavam?
Sandoval fizera catequese, era um lance meio compulsório quando ele era criança, então ele estudou isso. Toda a quarta depois da aula na quinta série, tinha catequese. Ele ia até lá, o padre conversava com a criançada... Sem putaria. Era um padre muito camarada. Gostava de futebol. Padre Gérson. Gente boa, mas gremista... Putz, na ponta da língua, se lembrasse do primeiro os outros dois viriam na carona... Era um nome de cantor...
Caralho... Era capaz de lembrar da escalação do time principal do grêmio em 95, e isso que era colorado, mas não conseguia lembrar dos três reis magos. Sabia de cor e salteado o hino do Inter, as músicas da torcida na Libertadores de 2006 e 2010, sabia a escalação da seleção brasileira de 94 e de 2002, mas não conseguia lembrar da porcaria dos nomes dos três reis magos.
Sabia nomear, em ordem os presidentes da época da ditadura, da época da política do café com leite, roteiristas do Homem-Aranha desde Stan Lee, filmes com Leonardo DiCaprio, o Conselho Jedi, capas da Playboy desde 1993... Meu Deus...
Tá, calma. Não é uma competição. Não é o que eu consigo lembrar, pensou Sandoval, respirando fundo.
Era o que ele não conseguia.
Enfim, não lembrava. Era só assumir. Mexer no celular. O Google tava ali, ao alcance dos dedos.
"Val, o pai não lembra, mas vamos dar uma olhada aqui na internet..."
Olhou a filha. Ela o encarava com os grandes olhos castanhos esperando a resposta, mexendo os pezinhos enquanto aguardava.
Que tipo de mensagem aquele curso de ação passaria?
Que todas as respostas estavam na internet? Que a filha não precisava estudar, bastava ter banda larga em casa?
Não. Era melhor ele ir até a estante, pegar a Bíblia que ganhara da mãe e, junto com a Valquíria, procurar pela resposta.
Melhor ainda.
Deveria mandar que ela procurasse sozinha.
Aprender que, ás vezes, a nós temos que procurar pela solução de nossas dúvidas nós mesmos...
Mas a Val só tinha oito anos...
Ela se voltara ao pai procurando por respostas... E ele lhe falharia tão cedo? Com uma questão tão mundana?
Ainda se a Val tivesse vinte e seis anos e perguntasse qual o sentido da vida... Pôxa, seria mais fácil dizer que não sabia. Ainda que fosse de maneira mais edificante... Mas ela com oito anos. Oito!
Querendo saber só quais eram os nomes dos três reis magos. E ele a desapontaria ali? Cinco passos depois da linha de largada?
Como ela manteria a confiança na sapiência paterna se, em uma questão tão mundana, ele já a decepcionava?
Ela o olhava, os pés balançavam mais rápido, estava impaciente. Desmascararia-o em instantes, não importava o quanto ele continuasse olhando pro jornal.
Era isso. Ou desapontava a filha ou fingia uma síncope. Ia cair pro lado, babando e fingindo se afogar na própria respiração.
Entre desapontar a filha e traumatizá-la, mil vezes a segunda opção.
Foi quando teve uma luz: Não inscrevera a filha nas aulas de religião. Ele próprio um ateu convicto, queria que a Valquíria tivesse liberdade para escolher a fé que lhe agradasse mais quando tivesse idade para entender os preceitos de religiosidade. Valquíria já fora batizada à revelia de sua vontade por pressão das avós. Ora, se aquilo era matéria de religião, Valquíria não precisaria estar fazendo aquela lição.
-Isso é pro teu tema de casa? - Perguntou.
-Não - Respondeu a Val, voltando a rabiscar no caderno. Eu só vi num filme hoje de tarde, eles levando presentes pra Jesus, e fiquei pensando quais era os nomes deles...
Sandoval iluminou-se. Não era pra lição. Recostou-se na poltrona, aliviado.
-Pai? - Valquíria chamou-lhe a atenção.
-Quê? - Perguntou, Sandoval, saindo do torpor de alívio.
-Quais eram os nomes deles? - Ela inquiriu, grafando cada palavra do questionamento com uma ginga de ombros e uma erguida nas sobrancelhas tênues.
Sandoval continuava na encruzilhada. Mas tinha um trunfo: Não era oficial.
Sorriu:
-Torquato, Serapião e Amázio.
Valquíria riu:
-Que nomes engraçados!
-Sim - Concordou Sandoval, falso. -São os nomes daquela região...
Valquíria voltou à lição de casa. Mais tarde, quado perguntasse quais eram mesmo os nomes dos três reis magos, ele não precisaria mentir que eram Torquato Serapião e... E... Evilásio? Enfim, não importava, ele já teria pesquisado e descoberto que eram Belchior, Baltasar e Gaspar.
Filho da puta!
Belchior, Baltasar e Gaspar.
Caceta. Tava na ponta da língua.
Enfim... O importante é que o orgulho paterno e a confiança infantil permaneciam incólumes.
Ou quase...

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