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segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Resenha Filme: Dois Papas


Mesmo aqueles de nós que desprezam as religiões, deuses e ídolos, tal como é o meu caso (meu único objeto de culto é a microssainha xadrez de uma morena), vez e outra devem ser capazes de ver com divertida admiração o conjunto de regras litúrgicas de algumas delas. Nesse sentido, há que se admitir, as práticas medievais de operação da Igreja Católica são, certamente, as que proporcionam o melhor entretenimento com suas fileiras de velhos uniformizados com capas esvoaçantes de cores específicas, guardas de trajes listrados, elmo e alabarda em punho, castelos centenários com portas acorrentadas até que se escolha um novo líder, fumaça preta, fumaça branca, intrigas palacianas, cismas e escândalos... Enfim, nenhuma religião faz espetáculo como o catolicismo. Os vinte séculos de prática se pagam a cada conclave, o evento político mais antigo ainda em uso no mundo por essa instituição tão universal quanto hermética, e que alardeia uma mensagem de amor e compaixão e ainda assim, espalhou e espalha tanto horror e sofrimento pelo mundo.
É justamente em um conclave que Dois Papas começa, na eleição que alçaria ao papado o sucessor de João Paulo II após sua morte em 2005 e a primeira vez que os cardeais Joseph Ratzinger (Anthony Hopkins) e Jorge Bergoglio (Jonathan Pryce) se encontram e, de cara fica claro, o santo dos dois não bate.
Bergoglio é um homem do povo, pouco mais que um pároco progressista, latino-americano que acredita que a fé católica precisa estar no mesmo mundo de seus fiéis, enquanto Ratzinger é um aristocrata, um político do Vaticano, conservador europeu que tem a mais inabalável certeza de que a tradição da doutrina é a chave para proteger a Igreja.
A influência e o poder de Ratzinger ficam claras na maneira como ele transita entre seus pares durante os momentos que antecedem a eleição, flanando como quem lembra aos demais quem é que manda, e especialmente na maneira como ele é eleito o novo papa, Bento XVI, sem sobressaltos.
Os anos passam e em 2012, sob o papado de Bento, Bergoglio vê sua posição dentro da Igreja como supérflua. Decidido a se aposentar do posto de cardeal ele planeja seguir servindo à fé como um padre comum em algum recanto da Argentina, ele viaja à Roma para pedir que Bento ratifique sua retirada, sem saber que o homem sentado no trono de Pedro tem outros planos.
Acossado pela revelação de esquemas de corrupção e fraudes no Banco do Vaticano que causaram a prisão de um de seus conselheiros mais próximos, o espocar infinito de escândalos de abuso sexual nas sacristias do mundo, e a degeneração de sua saúde, Bento planeja usar um expediente esquecido há mais de quinhentos anos e renunciar ao papado, mas antes de fazê-lo, ele pretende ter uma longa e reveladora conversa com o homem que se ergue como um dos mais fortes candidatos à sua sucessão. Uma conversa que irá confrontar duas filosofias absolutamente distintas. Duas formas de entender o papel do catolicismo no mundo e a forma como a Santa Sé é vista pelos fiéis ao redor do globo em um debate que poderá mudar a vida de um bilhão e duzentos milhões de pessoas.
Espertamente dirigido por Fernando Meirelles, que usa um vasto arsenal de truques e estilizações para manter a história escrita por Anthony McCarten, roteirista de Bohemyan Rhapsody e A Teoria de Tudo, sempre dinâmica e movimentada, Dois Papas é surpreendentemente ágil e divertido para um longa sobre dois religiosos discutindo teologia (alguém consegue imaginar um cenário mais inútil ou sonolento?), pois sob a batuta de Meirelles o longa vai muito além do falatório intelectual e da troca de farpas entre seus protagonistas. O longa se movimenta junto com Pryce e Hopkins, avançando sua trama conforme eles andam por Castel Gandolfo, a residência de verão do Papa, e por dentro das brilhantemente recriadas alcovas do Vaticano conforme Bento é constantemente lembrado por seu relógio de que deve continuar caminhando.
O roteiro de McCarten centra mais de sua atenção em Bergoglio. Embora haja um esforço para dar algum vislumbre à vida dos dois religiosos antes do sacerdócio, isso é feito de maneiras desiguais. Bento apenas menciona momentos de sua vida, enquanto Francisco tem direito a longos flashbacks de sua juventude, tanto antes do sacerdócio quanto depois, em um momento particularmente desafiador durante a ditadura militar argentina na década de 1970, quando tomou decisões que ainda o assombrariam por muitos anos no futuro...
Esses momentos não funcionam tão bem, talvez porque a divisão de tempo seja desigual (eu gostaria de ter tido um vislumbre do jovem seminarista Ratzinger fazendo parte da Juventude Hitlerista), ou talvez apenas porque, aí, o filme é destituído de sua principal qualidade:
A interação entre Pryce e Hopkins.
O longa inteiro é uma aula de atuação desses dois britânicos que parecem pisar em cada cena dispostos a mostrar como é que se faz. Os dois atores abocanham com gosto cada segundo do jogo de xadrez litúrgico do filme enquanto revisitam seus passados e expõe seus temores e esperanças em busca de um laço que os una na fé que ambos defendem.
Destituir a audiência dos dois em nome do passado de Bergoglio é um equívoco tanto porque nos rouba a oportunidade de ter o Bergoglio de Pryce narrando sua tragédia, quanto porque rouba o ritmo do longa.
Ainda seria possível criticar Dois Papas por ser, talvez, excessivamente leniente com Bento (um zumbi odioso tornado trágico, até simpático pela interpretação de Hopkins, num de seus melhores trabalhos recentes), um acobertador de criminosos que passou décadas trocando abusadores de paróquia, mas a verdade é que o longa jamais se propôs a ser um retrato fiel da realidade ou mesmo uma crítica à ela.
Dois Papas é uma bela alegoria a respeito da forma como pessoas diferentes veem a fé e a importância de erigir pontes conduzida por um diretor talentoso e um par de atores fenomenais, e nesse sentido, o longa só não é triunfante quando incorre em auto-sabotagem.
Dois Papas está disponível na Netflix, assista, vale a pena.

"-Quando ninguém é culpado, todos são culpados."

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