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segunda-feira, 19 de março de 2012

O Viking


E a Camila? A Camila estava se vendo em uma sinuca de bico...
A Camila que era uma moça centrada e decidida não estava acostumada a se ver em palpos de aranha como sugeria a ocasião que se avizinhava perigosamente em seu horizonte:
Ela estava se preparando para apresentar seu namorado, Chicão, à sua família. Em particular ao seu pai, o coronel Afonso, militar aposentado, de temperamento forte e noções pouco realistas de moral e de bons costumes.
Camila ainda era capaz de lembrar de quando, no segundo grau, levou um namoradinho para conhecer seus pais e deparou-se com o coronel na sala limpando uma arma com outras duas sobre a mesinha de centro. Após limpar o cano de uma pistola 765 ele olhou o rapaz ameaçadoramente através do cano e e perguntou-lhe quais eram as intenções dele para com sua filha.
Desnecessário dizer que o moleque quase se borrou, e que nunca mais parou de falar do pai louco da Camila na escola, o que ainda gerou um folclore de que ela era tipo uma princesinha proibida e coisas do tipo.
Não era o caso, Camila tinha muita personalidade, era divertida, culta e inteligente, sabia ser sacana quando era necessário e não se apertava nem nas mais cabeludas situações. Ainda assim, a pecha de princesinha do pai louco a acompanhou nos anos do ensino médio, de modo que ela namorou pouco, ou quase nada. Não que sentisse grande falta, mas de vez em quando ela pensava em como seria bom ter alguém para mimá-la um pouco, acalentá-la com riso e beijos e abraços, enfim...
Quando Camila terminou o ensino médio, viajou pra Europa pra estudar francês e voltou ao Brasil para seguir com seus estudos. Saiu de casa, fez faculdade, e foi justamente no último ano da faculdade que ela conheceu o Francisco.
Francisco, não...
Chicão.
Chicão era a alcunha de Francisco, provavelmente o homem mais parecido com um viking nascido depois do século onze. Chicão não nascera na Escandinávia, não usava chapéu com chifres, não besuntava o cabelo com margarina, não se vestia com peles e cotas de malha, nem navegava pelos mares do norte da Europa saqueando e pilhando, não... Nada disso.
Mas o Chicão era um viking.
Com um metro e noventa e seis de altura, pesando uns cento e dez quilos com a face barbada e os cabelos loiros, Chicão já passaria por um viking pra maioria das pessoas. O fato de ele ser, também, provavelmente o ser humano mais franco da face da terra, aliado à sua bússola social ineficiente, apenas ajudavam as pessoas a vê-lo como um tipo de selvagem.
Camila ainda se lembrava de maneira bastante vívida de quando o conhecera em uma festa da faculdade. O viu de longe, chamava a atenção com seu tamanho avantajado, e tinha um certo charme rústico com sua barba de Paul Bunyan. Camila tomou coragem e, com decisão, fora falar com ele. A primeira coisa que ouviu da boca dele foi um arroto, depois uma risada, e finalmente um "Bah, tri linda, tu, mulher.".
Chegou a se desencantar achando que ele fosse desses sujeitos que se embriagam e agem como idiotas. Levou alguns segundos de conversa, apenas, para ver que não. Ele não era um bêbado, nem era um idiota. Chicão era dessas pessoas cuja franqueza se esfrega perigosamente na grosseria. Não que fosse afeito a grosserias, o Chicão. Não era. Era uma boa pessoa, e não era mal-educado, apenas era total e absolutamente desprovido de qualquer espécie de frescura. E, ser humano que era, media aos outros de acordo com seus próprios parâmetros.
Era principalmente por isso que o Chicão, mesmo tendo vários bons amigos, volta e meia esbarrava na antipatia de pessoas que não entendiam o seu jeito direto.
Não foi o que aconteceu com Camila. Passado o estranhamento inicial natural que uma mulher sente quando pergunta "Tô bonita?", e o namorado responde "Tu tá, mas a tua roupa tá feia pra cacete." a Camila entendeu o funcionamento do Chicão, e aprendeu a amar todas as qualidades que existiam ocultas sob sua carranca barbada.
Camila aprendeu a amar a honestidade, a franqueza, e especialmente a integridade do Chicão. E ele era tudo isso. Quando algo estava certo, Chicão era o primeiro a fazer elogios, todavia, quando via algo de errado, não tinha meias palavras para cobrar melhorias.
Camila aprendeu a admirar esse comportamento, em especial porque o Chicão não disse "eu te amo" durante cinco ou seis meses de namoro. Nunca disse nada do tipo. Até uma dia de manhã, após ela e ele terem tido uma briga, e, após ele entrar no quarto dela e dizer "Tá, eu sentei na graxa nessa. Me desculpa.", e ela responder que o perdoava, ele disse, com todas as letras, que a amava. E ela sabia que, de alguém como o Chicão, só podia ser verdade.
O que apavorava Camila, no entanto era ver a franqueza absoluta do Chicão frente ao autoritarismo de seu pai, o coronel Afonso.
Camila montou em sua cabeça pelo menos sessenta e três cenários diferentes onde tudo ia pro inferno antes de sua mãe servir o café. A maioria deles envolvia o Coronel dizer, ao acaso, que sentia saudades da ditadura militar no Brasil. A Camila era capaz de ouvir o Chicão dizendo "Então o senhor, ou é burro, ou é mal intencionado.", a partir daí ela não tinha muita certeza do que aconteceria. Ela via o coronel apanhando sua 765 de baixo da mesa e disparando na cabeça do Chicão. Ás vezes no devaneio de Camila, o Chicão se esquivava da bala e decepava a cabeça do coronel com a faca de cortar pão ou um machado de combate nórdico, o que estivesse mais à mão. Em algumas edições do pesadelo ela se jogava na frente da bala, em outras, na frente da faca... Enfim, durante uma semana antes do jantar Camila teve pesadelos. Chegou a cogitar a hipótese de pedir ao Chicão que relevasse seu pai. Chegou a cogitar pedir que sua mãe dopasse o coronel para que ele estivesse dormindo durante o jantar. Desistiu de ambas as hipóteses, não podia podia nem queria pedir que Chicão deixasse de ser quem era. Nem podia pedir que sua mãe dopasse o coronel com nada mais forte do que água de melissa. O jeito era engolir em seco e esperar que o Chicão e o coronel não se matassem durante o jantar, e explicar à sua mãe que, como gostava muito do Chicão, era provável que não aparecesse nos próximos natais.
Na noite do encontro, a Camila saiu do quarto com uma tensão indisfarçável no rosto e no corpo. O Chicão, até que estava alinhado, de camisa e sapato, ele que estava sempre de camiseta e tênis. Aparara uma ou outra ponta teimosa de sua barba farta, e prendera suas madeixas loiras em um rabo de cavalo. Camila podia ver a cara de desaprovação do coronel Afonso pro rabo de cavalo do Chicão. Podia ver a expressão no rosto dele quando ela dissesse que ele era professor de História, que pro coronel era tudo comunista. Podia ver o Chicão com a sua cara de paisagem enquanto dizia com sua voz tonitruante de viking que militares que nem o Afonso eram responsáveis por trinta anos de miséria e endividamento no Brasil... Camila podia ver tudo isso, e tudo isso deixava seu corpo todo tenso. Dos pés à cabeça.
Quando entraram no táxi e deram o endereço dos pais da Camila o Chicão se espremeu no banco de trás ao lado dela e perguntou-lhe se estava tudo bem. Ela disse casualmente que sim, enquanto roía de levinho a ponta da unha o polegar e olhava pela janela. Chicão não perguntou de novo. Ele não costumava tergiversar quando algo o incomodava e não achava que ninguém o fizesse.
Ao chegarem ao portão branco da casa do coronel Afonso e da dona Norma, Camila já sentia um certo enjoo, ela sempre era acometida de enjoos quando alguma situação extremamente desconfortável se apresentava, e naquela situação, seu enjoo estava forte, ela tinha uma revoada de borboletas no estômago.
Entraram na casa, dona Norma veio recebê-los, apanhou o casaco da Camila, deu um beijo no Chicão, que correspondeu, então, o pavor quando Dona Norma foi até a entrada da sala e gritou:
-Afonso, olha quem chegou, Afonso.
O coronel levantou de sua poltrona verde-musgo surradíssima, e caminhou a passos decididos como se marchasse de calça de tergal cinza e camiseta branca até Camila e Chicão. Beijou a filha com delicadeza, e então, em um gesto duro, estendeu a mão ao Chicão. Que a mirou por uma breve fração de segundo, e então apertou-a vigorosamente.
-Bom aperto de mão. Se descobre muita coisa sobre um homem no aperto de mão. - O coronel observou.
Camila pensou: "É agora. Ele vai dizer que isso é uma idiotice sem tamanho, e vai falar de... Sei lá... Genocidas que tinha aperto de mão forte...".
Mas não. Chicão assentiu com um aceno de cabeça enquanto dizia "É um prazer, coronel, eu sou o Francisco.".
Quando sentaram na sala de estar pra conversar enquanto dona Norma e a empregada Jucileide terminavam de preparar o jantar, Camila teve novos momentos de pânico. À qualquer coisa que o coronel dizia ela esperava pela réplica avassaladora de Chicão. Mas não veio nenhuma. Ele chegou a dizer que discordava das medidas econômicas protecionistas dos governos europeus, mas não se embrenhou no assunto como temia Camila.
Durante a refeição, quando dona Norma perguntou se estava tudo do agrado de Chicão, novamente Camila anteviu um "Nem fodendo.", mas não. Ele disse que o sabor estava tão bom quanto a cara da comida, quiçá melhor. Ele usou essa palavra, mesmo: "Quiçá".
A noite transcorreu sem sustos, sem insultos nem arroubos de franqueza crua. Camila não relaxou em nenhum momento, de tão tensa, estava com dores musculares nas nádegas quando se despediu do pai e da mãe.
E incrédula quando entrou no táxi com um Chicão que se despediu dos dois dizendo que esperava voltar a vê-los.
Finalmente relaxada, Camila deitou a cabeça no ombro de Chicão e suspirou.
-Tudo bem? - Ele quis saber.
-Tudo... - Ela suspirou. E continuou em um bocejo:
-Eu vi mil formas de isso tudo dar errado. Mas no fim foi tudo bem...
Chicão sorriu enquanto se esgueirava para beijar o cabelo dela:
-Por que tu achou que fosse dar errado? Porque teu pai é meio reaça e eu não tenho papas na língua?
Ela riu:
-É um bom eufemismo pra vocês. O pai é um milico saudoso da ditadura e tu é um viking... Mas sim, era isso. Eu tinha medo que vocês começassem a discutir antes de apertar as mãos e estivessem se desafiando pra um duelo antes da sobremesa.
O Chicão passou o braço por cima dos ombros da Camila e confidenciou:
-Olha... Acho que ele maneirou, hoje. Primeira vez que eu fui lá, tu já não é mais criança... Mas deu pra ver que ele é meio autoritário, mesmo. Se no futuro ele for mais veemente em certos assuntos, ele e eu vamos acabar discutindo, e eu certamente vou falar merda. Mas...
Camila o olhou apreensiva:
-Mas o quê?
Ele sorriu ternamente sob sua barba cerrada:
-...Se tudo correr bem, a gente já vai estar casado e com um neto a caminho pra amaciar o velho.
Camila sorriu se aninhando no peito de seu bárbaro nórdico.
Por amor... Até mesmo os vikings mais ferozes aprendem a maneira.

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