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quinta-feira, 29 de março de 2012

Esperança


Andava pela rua com seu cachorro, o Miguel. Era um cachorro grande, felpudo, com essas caras amistosas que certas raças de cachorro têm. Apesar do tamanho avantajado, o animal esbanjava simpatia, de modo que as pessoas raramente se assustavam com o seu tamanho, apenas admiravam-lhe a beleza.
Miguel gostava disso. Uma vez que não era bonito e nem tinha ganas de ser simpático, agradava-lhe saber que seu cachorro fazia esse papel em seu lugar. Quem sabe fazendo-o parecer mais caloroso...
O cachorro, grande que era, requeria ao menos dois passeios diários. O que Miguel fazia de bom grado. Levava a sério a máxima de que o cachorro é o melhor amigo do homem, e não deixaria seu melhor amigo na mão. Sair com o cão era um prazer para Miguel.
E, naquela quarta-feira ensolarada mas de temperatura amena, Miguel saiu com seu cão pela rua. Agradava-lhe ver a alegria do animal enquanto andava, faceiro, cheirando árvores e arbustos pelas calçadas da cidade. E ele vinha, com um sorriso no rosto, curtindo uma das mais genuínas felicidades que conhecia.
Sair com seu cachorro era uma das poucas coisas que traziam felicidade a Miguel. Não era sempre assim. Mas ele passava por um momento difícil na vida. Família, dinheiro, amor, o mundo de modo geral... Tudo parecia errado naqueles dias. De modo que era uma atividade terápica sair a passear com o cachorro.
Entretanto, na noite anterior, Miguel sonhara com coisas conturbadas, que lhe trouxeram à memória lembranças vívidas de coisas que ele prezava demais, mas não tinha mais consigo. A dor que Miguel sentiu ao acordar de madrugada era violentamente física. Mas ele sabia que originara-se em seu coração.
Continuara com seus afazeres, tentara não pensar a respeito, mas não funcionou. A sensação de perda e miséria fincara-se na mente de Miguel, que saiu com seu cachorro na esperança de espantar a tristeza, mas mesmo ali, vendo seu melhor amigo banhado pelo sol, não conseguia se alegrar.
Estava tomado de melancolia e de revolta.
Ao passar por uma rua adjacente à sua própria, viu crianças humildes batendo bola. Ao passar por elas, todas pararam o jogo, e correram para afagar o cachorro.
O animal, porém, fez pouco caso das carícias, ansioso que estava por explorar a rua. As crianças elogiaram a beleza do cachorro, a maciez de seus pelos e seu bom comportamento, quiseram saber de que raça era, e qual seu nome, e porque ele não fazia festa.
Miguel respondeu todas as perguntas com paciência e um sorriso esboçado com esforço:
-É um golden. Chama-se Heródoto. E não faz festa pois está ansioso por esticar as patas, já que ele e eu moramos em um apartamento pequeno.
Um dos meninos, ainda afagando o cachorro, sorriu sinceramente enquanto olhava pra Miguel:
-A gente também é pobre, tio.
Não foi a súbita compreensão de como eram insignificantes seus problemas no plano cósmico, nem tampouco uma epifania de gratidão por tudo de bom que possuía comparado àqueles humildes meninos que arrancou o primeiro sorriso sincero de Miguel em semanas. Não... Nada disso.
Foi a franqueza da solidariedade gratuita. Sem pedido ou súplica. Quiçá sem merecimento, até, endereçada a ele.
Miguel chegou a ter, ainda que brevemente, a esperança de que, quem sabe... Nem tudo estivesse perdido.

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