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quinta-feira, 12 de maio de 2011

Celular


Todo o dia o Bertacco passava por aquela moça na Rua da República. Na primeira vez, ele, sempre atrasado, sempre contido, reservado, não reparou muito nela, não. Foi apenas uma pessoa de quem ele desviou na rua pra evitar um esbarrão. Ela vinha da João Alfredo em direção à República, e ele fazia o caminho inverso. Quase se chocou com ela, que andava a passos rápidos falando ao celular. Desviou-se dela como se fosse num passo de dança e pediu desculpas presumidas com um "Ôooopa...", mas ela não respondeu. Esquivou-se dele, também, e seguiu andando.
Bertacco chegou a pensar em um insulto, em chamá-la de mal-criada, ou algo do gênero. Não em voz alta, até por que além de ser contido, reservado, e polido, não era um criador de casos, e estava atrasado demais para começar a sê-lo. Mas pensou em xingá-la para si. Algo como "Eita mulherzinha mal-criada!" enquanto seguia seu caminho. Mas, por estar atrasado, e por perceber que ela devia, também, estar, e falava ao celular e tudo mais, deixou pra lá.
Nos outro dia tornou a vê-la. Aparentemente o horário dela estava mais calmo, mais frouxo, ela ainda andava rápido, mas não estava praticamente correndo como na primeira vez. Embora continuasse falando ao celular.
Bertacco passou a vê-la com muita frequência, e prestar atenção nela.
Ás vezes carregava uma bolsa pequena pendurada pela alça no braço direito, em outras oportunidades trazia uma bolsa imensa pendurada no ombro. Em mais de uma vez Bertacco a viu carregando as duas bolsas simultâneamente, e em outras tantas a viu carregando as duas bolsas, e uma pasta enorme sob o braço. Sempre ao celular, ás vezes o segurando entre o ombro e a cabeça, entortando todo o corpo.
Bertacco olhava aquilo com um pouco de escárnio, pra ser bem franco. Algo como, "Qual o problema dessa mulher?", ele achava doentio alguém viver pendurado ao telefone móvel.
Até que em uma manhã, Bertacco particularmente atrasado, passou pela moça, e a ouviu dizendo ao telefone:
-Fiquei até surpresa quando ele parou do meu lado e disse que hoje eu podia sair no horário...
Bertacco não terminou de ouvir a conversa, mas se condoeu dela. Imaginou-a sendo acossada por um chefe explorador que demandava dela horas e mais horas extras a ponto de o único momento do dia em que ela podia falar com a mãe, com a irmã, ou com uma amiga, era naquele caminho que ela fazia, entre sua casa e o serviço, quiçá o ponto de ônibus. Bertacco, no dia seguinte, reparou mais na moça, quando se cruzaram. Era bonita, ela. Cabelos bem pretos, cortados em estilo chanel. Sombrancelhas bem desenhadas, óculos-escuros bem grandes que a faziam parecer um pouco com uma vespa. Lhe caia bem, ainda assim. Usava roupas confortáveis, práticas e simples. Calça jeans, blusa preta larga, sapatos baixos. Tinha um corpo esguio de aparência ágil. Bertacco, pela primeira vez, olhou pra ela como mais do que a "doida do telefone celular". E a achou bonita. E sentiu-se tão próximo dela que sua imagem perdurou na mente dele durante o dia todo.
Na manhã seguinte, olhando em volta procurando por ela, distraiu-se, a quando virou a esquina da República com a João Alfredo, esbarrou justamente com ela. A bolsa pequena caiu pra um lado, a bolsa grande pro outro, a enorme pasta que ela acomodara sob o braço abriu-se espalhando lâminas e transparências. Apenas o celular manteve-se incólume entre seu rosto e seu ombro. Abaixou-se envergonhado a se pôs a juntar as coisas dela. Ela se abaixou, também. Continuava ao telefone fazendo "hu-hmmm", e "sim", e "hãn". Ficaram frente a frente. Ele a ajudou a acomodar as folhas dentro da pasta, e segurou a bolsa grande enquanto ela a acomodava no ombro. Ela sorriu e o olhou com o óculos escuro na ponta do nariz, seus olhos eram tão lindos. Sorria. Piscou e fez "obrigada", apenas mexendo os lábios.
Bertacco teve ânsias de tirar-lhe o telefone das mãos, e de dizer que ela era bonita. De dizer que não devia se entortar toda pra acomodar o telefone entre a orelha e o ombro. De dar-lhe um fone de ouvido. De desejar-lhe boa sorte. De desejar-lhe um baita dia. Mas, contido, polido, reservado que era, disse apenas "de nada". E seguiu seu caminho, sem olhar pra trás. E nem soube que ela, após andar alguns metros, olhou por cima do ombro, e sorriu mais uma vez.

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