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quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Celeste


Quando o telefone dele tocou, e ele viu o nome do Diego no display, ele sabia que boa coisa não deveria ser.
Não que o Diego fosse má pessoa. Não era, longe disso. Diego era um cara legal, que exceto pelo apreço por drogas ilícitas e por chamar todo mundo de "carinha", era um sujeito daqueles que qualquer grupo deveria ter.
Era esforçado, diligente, boa praça, alegre... Um amigão. O problema é que, ás vezes, o Diego era proativo demais. E nessas ocasiões acabava arrumando sarna pra ele e para os outros coçarem, especialmente nos seus momentos de empreendedorismo exacerbado. Não era raro ele ter ideias geniais que acabavam com prejuízo de tempo, esforço e dinheiro. Por sorte, os prejuízos eram mínimos, já que as ideias brilhantes de Diego eram, em sua maioria, do tipo mirabolante, que tinham baixo custo e promessas de lucro abissal que, infelizmente, jamais se cumpriam.
De qualquer forma, quando o telefone tocou, e o nome do Diego surgiu no display do aparelho celular, ele chegou a pensar em não atender. Mas o Diego, como já foi dito, era um bom sujeito, e não merecia ficar pendurado. Então, ele respirou fundo, ergueu os olhos, e atendeu:
-Fala, Dieguito.
-E aí, amigão? Tudo na paz? - Perguntou, Diego, efusivo do outro lado da linha.
-Tudo joia. E tu? Na buena?
-Joinha, tudo bem, tudo muito bem...
-Legal...
-Mas então... Tu deve estar pensando porque eu te liguei, né?
-Me passou pela cabeça...
-Pois então... Lembra da Megan?
Ele chegou a preparar a língua pra perguntar "A Fox?", mas achou melhor não. Não gostava de falar ao telefone, e não queria alongar a conversa.
-Não... Não lembro. Que Megan?
-A minha amiga australiana... A que veio pra cá com mais uma ano passado e eu te falei que ia te chamar pra gente sair os quatro porque elas não falavam português e tu era quem eu conhecia que falava melhor inglês...
Ele lembrava. Confirmou:
-Ah... Lembro sim...
O tom de voz deve ter saído tão murcho quanto lhe foi a lembrança. A Megan era uma moça quase com altura igual à sua, cabelo loiro branco, de cintura/quadril quadradões e aquele tom de pele de quem passa a vida inteira embaixo de sol, meio um couro avermelhado... Obviamente a Megan não era o par de Diego. O par de Diego era Jenny, a amiga dela, com altura razoável, cabelos castanho-escuros e quadris arredondados muito mais convidativos. Desnecessário dizer que ele não teria aceitado o convite se ele tivesse, de fato, se confirmado.
-Bah, pela tua voz tu não curtiu, mesmo, a Megan... - declarou Diego do outro lado da linha.
-É... Ela não era exatamente meu tipo...
-Mas ela é loucona, cara! Depois que fuma um baseado e bebe duas cervejas aquela mina faz de tudo, bungee jump, sexo anal, rouba no mercado, faz ménage e acho que até gang bang...
-Ah, e como é que tu não me avisa antes? São exatamente as qualidades que eu procuro na futura mãe dos meus filhos...
Diego riu do outro lado da linha. Continuou:
-Tá, mas não é da Megan que eu quero falar. É de outra amiga minha. A Celeste.
-Hã. O que tem a Celeste?
-Seguinte, a Celeste é francesa, formada em História, veio morar aqui e achei que tu e ela podiam se conhecer...
-Cara, de onde é que tu tira esse monte de mulher estrangeira? É do facebook, isso?
-Não, a Celeste é amiga da minha guria. Elas se conheceram na Nova Zelândia. A Celeste é um amor, cara, e eu acho que ela e tu têm tudo a ver...
-Bah, Dieguito... Eu te agradeço a lembrança, mas eu não tô procurando namorada, nem uma foda avulsa com uma mina porra-louca que topa tudo depois de fumar maconha e beber um pouco... - Ele respondeu, franco.
Do outro lado da linha, o Diego fez um ruído, meio suspiro, meio rosnado, e continuou:
-Cara, conhece a mina. Não é pra ser tua namorada nem pra ser uma noite de sexo, é só uma guria com quem eu acho que tu vai se identificar. Ela mora aqui sozinha, só conhece a Carol, eu e mais meia dúzia de babacas da UFRGS, podia fazer bom uso de um amigo que nem tu. Um cara inteligente, sensível... Ela mora ali na Washington Luiz, a gente se pecha na frente da casa dela, a Carol, tu e eu, e vamos comer um sushi ali na Fernando Machado. Vocês conversam, se tu gostar dela vocês trocam telefones, ela pega teu face-
-Eu não tenho face...
-Ela pega teu e-mail. Teu telefone, o cartão da loja... Sei lá. Vocês trocam contato e podem virar bons amigos.
-Bah, Diego... Não sei...
-"Não sei", pra ti, é não. Amigão... Deixa eu colocar as coisas assim: Me faz esse favor. Ao menos tenta. Eu não aguento mais, a Celeste tá sempre comigo e a Carol. Se ela não começar a fazer amigos rápido, meu relacionamento vai virar um threesome sem sexo...
Como já foi dito, o Diego era um cara legal. O tipo de sujeito pra quem as pessoas se constrangem de negar um favor porque ele jamais nega nenhum. Maldito Diego.
Dois dias depois, lá estava ele, na esquina da Washington Luiz com a General Portinho, segurando o guarda-chuva com a mão esquerda enquanto com a mão direita, dura pelo frio, mexia no celular, tomado pela certeza de que estava atrasado.
Ligou pro Diego duas vezes na esperança de confirmar o endereço e o horário, mas o celular do amigo só dava caixa postal. Andou olhando atentamente a fachada dos prédios na esperança de que, ver o número que lhe fora dito dois dias antes, avivasse sua memória.
Enquanto andava olhando atento para o nome e o número dos edifícios, percebeu uma moça falando ao telefone sob a marquise diante de um deles. Ela desligou antes que ele chegasse perto o suficiente para ouvir o que ela dizia.
Ele se aproximou olhando o número do prédio, a moça ficou o observando, parecia desconfiada. Quando ele estava perto, olhando em vão o número do edifício, ela perguntou:
-Oi... Você é o amigo do Diego e da Carrol?
Ele assentiu, sem jeito, apenas balançando a cabeça. Ela estendeu a mão:
-Eu sou a Celeste.
Ele sorriu, se apresentou e cumprimentou-a com um aperto de mão. A moça era bonita. Pouco mais baixa que ele. Cabelo castanho aloirado, olhos claros... Verdes ou azuis? Ele não conseguiu identificar. Estava vestida de maneira simples, jeans, botas, um casaco de brim verde-militar, usava um cachecol branco e preto estilo boliviano, e tinha os cabelos presos no alto da cabeça sem grande esmero. A produção descolada dela o fez sentir-se aliviado. Ele estava usando agasalho de moletom e casaco de couro, tênis e jeans. Não se vestira para uma ocasião formal. Ela o olhou, apertando a boca e arregalando os olhos em uma expressão de desconforto:
-A Carrol me ligou. O Diego se sentiu mal e non vai poder vir... Ela se oferreceu prra vir e a gente sair junto, mas achei melhor non...
-É... - Ele concordou, também desconfortável. -Eles moram sozinhos... Vai que dá um negócio nele, ele precisa ir pro hospital e tá sozinho, né?
Ela arregalou mais os olhos. Eram verdes:
-Um negócio? Mas serrá que é ton sérrio?
Ele abanou as mãos diante de si:
-Não, não... Tava brincando, não deve ser nada. Só muita cachaça com mel de Morungava...
Ela sorriu:
-Ah, bon... Que medo...
Ficaram os dois parados em silêncio por breves instantes. Até que ela disse:
-Acho que o jantar fica prra outrra, non?
Ele não disse nada, apenas sorriu e maneou a cabeça. Ela esfregou as mãos e começou a andar em direção ao prédio, de costas:
-Bon, esperro que a gente consiga conversar em outrro dia, ahn? Prrazer de conhecer...
Ele ia virar e ir embora, mas, diabos, a moça deveria estar esperando o jantar. Ia ficar sozinha aquela noite. Já era tarde pra ela ir ao mercado e comprar alguma coisa... Resolveu ser cavalheiro, e dar aquela noite de folga pro traidor inescrupuloso do Diego. Abriu os braços, percebeu que estava gesticulando demais. Exagerando a expressão corporal. Parecia o Rocky Balboa ou o Keanu Reeves, ondulando o corpo e agitando as mãos...
-Olha... Eu... Eu não jantei ainda... A gente podia manter essa parte do plano, e jantar juntos. O que tu acha?
Ela mordeu o lábio inferior um segundo... Olhou pra ele com uma expressão que não deixava bem claro o que ela estava pensando. Podia ser "Esse sujeito é meio grande. Se for um maníaco eu não vou conseguir me defender sozinha", ou também "Ah, passar a noite comendo com um completo desconhecido, numa cidade estranha numa noite gelada e chuvosa...?". Sorriu e deu uma piscadela:
-Vou pegar un parapluie.
Ele ficou ali embaixo, pensando o que seria um parrapluí até ela voltar com uma sombrinha azul com bolinhas brancas. Ele perguntou o que ela queria comer. Ela disse que a "Carrol" e o Diego haviam falado a respeito de sushi, e que ela gostava bastante. Foram até a temakeria que Diego havia mencionado no telefonema. Durante o trajeto, feito a pé, ele fez algumas constatações a respeito de Celeste.
Ela era uma moça bonita. Um tanto magrinha, mas tinha um rosto muito bonito, lindo, mesmo.
Ao contrário do que ele, preconceituosamente imaginara, ela não fedia. Ao menos não à distância em que se encontravam, de uns quarenta e cinco centímetros.
Ela falava português muito bem. Morava no Brasil havia pouco mais de dois anos, e à exceção do charmoso sotaque e de uma ou outra palavra composta, como guarda-chuva, gírias e o fato de não ter decidido se usava "tu" ou "você", dominava o idioma.
Ela era formada em História, e, como ele, adorava antiguidade clássica. Também gostava muito da parte antropológica de História, que ele, francamente odiava. Ela era inteligente, muito. E era uma moça simpática, embora estivesse, obviamente desconfortável com a situação, ainda que não tão desconfortável quanto ele.
O desconforto só aumentou quando chegaram à temakeria.
Ele conhecia o lugar, mas não havia se dado conta de o quanto o ambiente de meia-luz e mesas pequenas e próximas parecia feito pra jantares românticos. Escolheram uma mesa de quatro lugares, e ficaram mais à vontade que estariam em uma micro mesa para casais.
Continuaram conversando, ela falava mais do que ele, e isso era normal. Ele era de poucas palavras, mesmo. Além do mais, ouvi-la falando com seu sotaque gostoso de desenho animado era aprazível.
De qualquer forma, ficou bastante claro ao longo do jantar, que ela e ele tinham quase nada em comum, exceto a História e o Dieguito.
Celeste era dessas cidadãs do Mundo. Viajava com frequência, aos vinte e oito anos morara na na Nova Zelândia e no Canadá, raramente ficando mais de um ano em cada país. Viajara à Índia, ao Peru, ao Reino Unido, República Tcheca, Bulgária, Argentina e praticamente toda a Europa ocidental. Não se via sossegando em parte alguma, ao menos não ainda. Quando estivesse com todos os diplomas que queria ter, pensava em voltar à França, mas não para morar em Lille, onde nascera, mas sim em Paris, pra ela, a verdadeira capital da Europa.
Ele preferia não falar muito de si, mas acabou contando o básico. Nerd declarado, cinéfilo inveterado, leitor ávido. Conhecera o Diego pois haviam trabalhado juntos. Nunca saíra do Brasil, achava Porto Alegre a capital do Mundo, e os únicos lugares que queria, mesmo, conhecer eram Nova York, San Diego em época de Comic-Con e o interior da Irlanda, de resto, passava bem sem.
As diferenças óbvias, porém, acabaram na música. Ela era fã dos Beatles. Como ele, achava que eles tinha criado o rock como o conhecíamos, e quando ele disse que Helter Skelter era o pai dos heavy metal, ela se iluminou em concordância de uma forma tão surpresa que ele foi obrigado a confessar que não inventara aquilo, mas que lera em algum lugar.
Daí a conversa seguiu para o heavy metal em geral, o desprezo de ambos pelo Slipknot, o Christopher Lee que é um autêntico metaleiro, mesmo com mais de 90 anos de idade, e filmes de horror da Hammer estrelados por Lee, como Drácula, e O Homem de Palha, culminando no absurdo remake dese último, estrelado por Nicolas Cage, onde o astro espanca mulheres de tudo quanto é jeito.
Riram bastante quando a conversa seguiu por esse curso. Quando pararam, já haviam comido e terminado as suas bebidas. Ele sorriu pra ela de seu lado da mesa. Em silêncio imaginou como era estranho estar sentado em um restaurante japonês com uma francesa autêntica.
Ela também sorriu. Disse o nome dele, com os erres saindo dobrados.
-Que foi? - Ele perguntou.
-Nada. - Ela respondeu. -Só gostei de dizer teu nome. É sonorro.
Ele riu.
-Não tanto quanto Celeste Ailly... Esse é um belo nome. Lembra paisagens outonais...
Ela ergueu as sobrancelhas fazendo uma falsa expressão de lisonja exagerada. Ele riu.
-Desculpe a pieguice. Não posso nem dizer que foi a bebida porque não bebo.
Ela, ainda sorrindo, pousou a mão sobre a dele por cima da mesa.
-Gostei de te conhecer.
Ele sentiu um gosto metálico na boca. Ficou sem expressão. Uma leveza súbita no estômago. Conhecia aquela sensação. Um pequeno acesso de pânico que já experimentara algumas vezes antes na vida. Conteve-o. Respirou fundo, acariciou a mão dela como se emaranha o cabelo de um moleque.
-Também gostei de te conhecer, mademoiselle.
Ela riu do francês sem-vergonha dele. Ele se justificou:
-Estudei francês dois anos. Quarta e quinta séries. Ensino fundamental, escola pública. Tenha um pouco de piedade.
-Ao menos tu non tentou falar anglais comigo. Fico com raiva...
Ela continuava segurando os dedos dele. Ela era tão branca quanto ele, quase um boneco de neve. Tinha dedos finos e unhas cortadas curtas, sem esmalte, só uma base incolor. Ele olhou o celular:
-Nossa, meia noite e vinte, já...
Ela fez cara de assustada:
-Tão tarde?
Ele pediu a conta, pagou no caixa. Ela quis dividir, ele pediu-lhe que não. Ela aceitou. Ainda chovia quando saíram, ela e ele andaram conversando sobre a arquitetura de Porto Alegre. Ele mencionou que era meio nova yorkina, ela riu. Ele disse que comprovaria do ângulo certo se voltassem a se ver. Ela aceitou o desafio. Ao chegarem diante do prédio dela, ela disse:
-Chegamos...
Ele sorriu.
-Vou guardar bem o número, agora. Lance de memória visual e tal... Aí, quando nos vermos de novo, não me perco.
-Boa ideia. - Ela aquiesceu. Enfiou a mão na bolsa, tirou as chaves, e olhou pra ele:
-Gostei de ter te conhecido. O Diego disse que tu erra muito gentil.
-O prazer foi todo meu, Celeste.
Ela se inclinou pra frente, e de supetão, o beijou. Colocou a mão em seu pescoço e, muito perto dele, com o peito encostado ao seu, de forma que ele podia sentir o cheiro dela, que era bastante agradável, um perfume floral levinho, ela disse:
-Tu non quer subir?
Ele congelou. Não estava habituado àquela qualidade de convite... Hesitou brevemente para responder, ela continuou:
-Agorra tu deve estar pensando que eu sou uma mulher da vida...
Ele riu:
-Não... Não tô pensando nada disso...
Ela continuou:
-Tá sim... Mas eu non faço isso semprre... Na verdade eu nunca faço essas coisas. Mas vejo as amigas da Carrol fazendo, e prra elas e ton naturral... Não querro que tu pense errado de mim...
Ele conhecia as amigas da Carol. Eram, mesmo, meninas "dadas". Sem grandes pudores. Encaravam sexo com a mesma naturalidade que a maioria dos homens, e faziam quando tinham vontade. Bem diferente dele, que era um rematado careta.
-Não. Não penso, não. Não penso, mesmo.
Ela se afastou alguns centímetros, de modo que aqueles olhos verdes muito claros ficaram a milímetros dele:
-Enton... Você non quer subir?
Ele sorriu, com uma das mãos na cintura dela e a outra no bolso.
-Olha... Eu quero. Quero muito. Subir contigo hoje seria uma realização pra mim. Seria meu Antes do Amanhecer particular.
Ela riu, francamente.
-Mas eu não posso. Eu tenho alguém na minha vida.
-Ah... Desculpa... Eu non sabia que tu erra noivo - Ela disse, fazendo confusão com as palavras enquanto se afastava.
Ele a tranquilizou:
-Não... Não te preocupa. Ela e eu não estamos exatamente juntos, mas... Eu tenho alguém. Tu não sabia. Não foi nada. Mas enfim... É isso. Eu tenho alguém, e não seria certo com ela e nem contigo. Então, eu vou ter que declinar.
Ela olhou pra ele com uma expressão intrigada:
-Tu tem alguém, mas vocês non eston juntos?
Ele balançou a cabeça positivamente.
Ela continuou:
-Enton... Tu tem alguém, ou é alguém que tem a você?
Ele juntou as sobrancelhas no alto, fazendo uma expressão de desentendido:
-Espero que os dois...
Ela passou a mão no rosto dele, e deu-lhe outro beijo, dessa vez um beijo no rosto, suave, deixando os lábios entreabertos colados na bochecha dele por algum tempo. Quando se afastou, ele ainda estava inebriado pelo perfume, os olhos e o sotaque. Ela lhe acariciou o peito e disse:
-Ainda assim gostei de te conhecer. E esperro que a gente se veja de novo.
-Eu também. - Ele respondeu, sorrindo.
Ela entrou no prédio, e antes de fechar a porta, lhe acenou com dois dedos dizendo:
-Ela é uma moça de sorte, ahn?
Ele pensou um segundo. Olhou pro chão, enfiou as duas mãos nos bolsos e respondeu convicto:
-Não... O sortudo sou eu.

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