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terça-feira, 20 de agosto de 2013

Gentileza


Vinham conversando dentro do ônibus o Tenório e o Ronaldo. Os dois suados, fedidos, recém saídos de uma partida de futebol. Trajavam camiseta, calção, meiões e chuteiras de futebol society dentro do coletivo, um deles vestia uma jaqueta esportiva sobre a camisa, o outro, apenas uma mochila nas costas com suas "roupas civis" dentro.
O Tenório perguntou, casualmente:
-E aí? Que vai fazer agora?
O Ronaldo disse:
-Vou chegar em casa, tomar um banhão e sair com a patroinha, depois. Vamos ao cinema...
O Tenório balançou a cabeça casualmente, e então teve um estalo. Virou-se rápido e perguntou:
Me diz uma coisa... Quando vocês vão ao cinema, tu paga a conta, ela paga, ou vocês dividem?
O Ronaldo titubeou... Sabia a resposta, claro, mas já ouvira tantas críticas por conta dela. Sabia que responder a pergunta sempre gerava um debate:
-Eu pago...
-Sempre? - Quis saber o Tenório?
-Sim. - Confirmou o Ronaldo.
O Tenório ficou em silêncio, esperando o Ronaldo querer saber o porquê da pergunta, mas o Ronaldo se manteve firme e silente. O Tenório não se conteve:
-Eu te pergunto porque eu li um artigo sobre um estudo de uma universidade dos Estados Unidos... Universidade de Chapman, na Califórnia, eu acho... Ou alguma coisa assim... Que dizia que o cavalheirismo pode travar os ideais feministas de igualdade...
-É... É uma forma de ver as coisas. Eu discordo...
-Tá, mas digamos que a mulher ganhe mais que tu... Tu, ainda assim, pagaria a conta?
-Sim. Isso já me aconteceu, namorava uma menina que ganhava mais que eu, e eu é quem pagava a conta... - Respondeu o Ronaldo.
-E tu não se sentia um trouxa pagando a conta pra uma mina que tinha mais grana que tu?
O Ronaldo riu:
-Cara... Eu já fui chamado de trouxa por homens porque sempre pago a conta e de machista por mulheres pela mesma razão. Mas é uma questão de criação. Da maneira como eu fui criado, a mulher quando sai comigo pode sair sem bolsa. Pra mim, pela minha criação, é dever do homem prover. Mas eu também não vejo o ato de pagar a conta como demonstração única de cavalheirismo, abrir a porta, puxar a cadeira, oferecer a mão pra moça descer do carro, servir o copo dela, deixá-la passar na frente... Tudo isso é cavalheirismo...
O Tenório balançou a cabeça brevemente. Tomou fôlego após pensar um momento:
-Então é tipo charminho... Pra ganhar a mina, e tal?
O Ronaldo mexeu a mão, como que se defendendo da afirmação:
-Não... Nada a ver... Eu acho que cavalheirismo... Gentileza, civismo... Têm que ser coisas inatas, tá ligado? Eu faço porque é a minha forma de ser, não é por convenção social. Mesmo gente que, teoricamente, não mereceria cavalheirismo de minha parte, gente incapaz de retribuir educação, o receberia de mim, porque é o jeito que eu sou... A educação não é um lance que eu faça pros outros, é pra mim. Se uma mulher quiser me pagar uma conta, eu vou me sentir extremamente desconfortável... Pra mim não funciona.
O Tenório, porém, parecia não ter entendido:
-Mas e tu é rico, por acaso? Pra ficar bancando tudo?
O Ronaldo riu:
-Não... Claro que não sou rico. Tô aqui, andando de ônibus contigo. Sou proletário, blue-colar worker, pobre, mesmo. Mas é como eu te disse... É um lance de criação... E a mulher com quem eu me relaciono merece todas as demonstrações de dedicação, deferência e afeto...
O Tenório, ficando lívido, respondeu:
-Isso até tu descobrir que tá se esfalfando pra agradar a desgraçada e ela só sonha com um ricaço tarado que encha ela de presentes e faça ela assinar um contrato garantindo que vai dar o cu!
Silêncio dos passageiros mais próximos. Alguns olhares reprovadores pro Tenório, risadinhas nervosas do fundo do coletivo. O Ronaldo, olhando em volta, muito embaraçado perguntou:
-Cinquenta Tons de Cinza?
O Tenório gritou num sussurro:
-Filha da puta, lendo putaria nas minhas costas. Esses dias... - Olhou em volta, baixou mais a voz, aproximou-se do ouvido do Ronaldo:
-Esses dias me pediu pra amarrar as mãos dela pra trás...
O Ronaldo o deteve com um gesto, deu-lhe um tapinha nas costas:
Tudo bem... Vai passar...
O Tenório deitou a cabeça no ombro dele, e o Ronaldo não soube se foi um solavanco, ou se o seu amigo realmente soluçou.

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